segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Entre o silêncio e o sentimento

Imagem: Promenade, de Marc Chagall


O avião levanta vôo e Maria seca as tímidas lágrimas que lhe escorrem pelo rosto. Ela não quer chorar. Aquele fim de semana já estava arquivado junto com os momentos mais felizes de sua vida e não justificava nenhum traço de tristeza. Começava ali outra história, sem data para terminar. O contato com a natureza, o local cuidadosamente escolhido, a recepção afetuosa regada a champagne oferecido pela administração da pousada, o reencontro após 40 anos, conseguiam a façanha de interromper o repetitivo filme de preocupações de Maria. Ela percebia a necessidade interior de ampliar o contato com a vida universal e começar a ver o mundo externo de forma diferente, bebendo em fonte de águas puras.

Antes das reflexões que inevitavelmente aconteceriam, Maria revisita, no tempo e no espaço, o sonho vivido nos últimos dias. Sonho é encantamento, e entender a inserção dessa magia na realidade exigiria dela mergulhos mais profundos no rio das almas, para além da consciência comum, com sensações que não podem ser comparadas aos nossos sentidos. Uma experiência individual que derruba todo e qualquer limite e a coloca em harmonia com outra lógica, outra dimensão do amor. Enfim, sentia-se privilegiada sem precisar se esconder do silêncio – seu espião interior. Podia se entregar ao sentimento, certa de não estar infringindo o direito e a dignidade de João, de não estar atendendo primeiro aos seus instintos.

Hoje, em tempos que o tempo se acelera diante das nossas consciências, Maria não precisa se angustiar com o futuro, nem camuflar seus medos, nem nadar contra a correnteza. Pode manter seu coração sereno, sabendo que a natureza seguirá seu curso normal, obedecendo aos ritmos e à harmonia. A vida é um exercício de humildade, de disciplina, de constância naquilo que se faz, assim, ela circula com coragem no seu interior e vive o exterior nos momentos em que é solicitada pela realidade.

Lembra-se de quando criança amanhecer o domingo recitando a quadrinha “hoje é domingo, pede cachimbo"; não se conformava com o trecho que dizia “a gente é fraco, cai no buraco”. O tempo e a vida aos poucos lhe ensinaram que o fraco realmente cai no buraco e esse buraco pode ser bem fundo. No entanto, o “a gente é fraco” é questionável e não necessariamente uma verdade. O ser humano é capaz de realizar a si mesmo, pensar, escolher, arrepender, voltar atrás, fazer de novo. A cada recomeço, a consciência e o aprendizado são frutos individuais, de tal forma que a vida pode ser realmente um buraco fundo ou uma grande ciranda em que se mesclam as vicissitudes da nossa existência com a alegria de viver.

Falar sobre a felicidade é complicado demais, mas sem dúvida Maria pode abordar a alegria de viver como um antídoto do “a gente é fraco; cai no buraco; o buraco é fundo; acabou-se o mundo”. A alegria lhe é próxima; está tão perto dela, que gargalhar não é dificuldade alguma. Ela pode até escolher se quer olhar um quadro de Goya ou de Matisse; mesmo diferentes, os dois artistas conheciam muito bem a existência da luz e da sombra. Opta por Chagall, que pinta o sonho e a fantasia. Pode escolher a fotografia ou o negativo no mundo analógico, mas vive um mundo digital. E sorrir faz bem não apenas na hora da fotografia. Sorrir torna a vida mais fácil. Então, para quê chorar? João não foi embora, ele voltará. Maria deixa o aeroporto confiante, sem receio de ser punida, porque tem a ousadia de sorrir quando o mundo parece desabar.

8 comentários:

  1. Lindo texto, Marley. Sempre venho te ver, o melhor, te ler. Beijos

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  2. Uhullll! Arrasou! Que delícia de texto! Que energia! Beijos, Florzinha!

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  3. Cássia querida... admiração mútua! Sou sua visitante também, e o que é melhor: sinto-me acolhida em seus textos! Beijos!

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  4. Minha não anônima Rô Torquato... porque sempre sei que é você, heim? Tenho certeza da sua torcida...Beijos, Docinho!

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  5. Minha "invisibilidade" lhe é "transparente"! Assim não vale!

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