terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Preciso de mudanças!

Springs, de Henri Houben
A mudança está no ar,  Maria não sabe o que a espera pela frente. Mais crescida e madura, reluta em abrir seu universo pessoal. Não há nada de novo sobre a Terra e o que Maria pode esperar é por experiências que lhe mostrem outros aspectos da vida que está aí, desde que o mundo é mundo. Está tudo aí. Ela só precisa ver, mas não sabe o quê. Há um certo cansaço em suas palavras, uma certa impaciência pela falta de surpresas. Seu coração está endurecido como uma pedra. Questiona tudo, Deus, trabalho, sentimentos, valores.

Bem, não sei qual é o rumo que Maria vai tomar, mas eu vou continuar contando histórias. Minhas Marias, personagens reais ou fictícias, sempre passam mesmo pela minha observação e compreensão. Neste sentido, o horizonte é de esperança.  Assim como Jeconias, rei de Judá, quando foi anistiado pelo rei da Babilônia, espero que Maria tire parte das suas roupas de prisioneira para tentar alçar novos voos.  Ela envelhece antes de mim. Vai sempre na frente em suas experiências e agora que é legalmente idosa mistura mais uma vez suas gavetinhas cartesianas em busca de novas combinações para uma velhice honrada. Todas as portas fechadas hão de se abrir. Caminha ainda ruborizada, mas com rosto alegre, enquanto eu, a seu lado, observo cada detalhe de sua transformação para traduzir em palavras. Nada fácil observar o essencial e traduzir a essência, mesmo com o olhar treinado para perscrutar almas humanas.  

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Vozes do silêncio

Leonid Afremov


Ah! Esse clima gostoso - de chuva fina, de periquitos alvoroçados, de ruídos distantes, de silêncio de palavra - transporta Maria para seu mundo secreto, penetrável e habitado unicamente por ela. A eterna contradição de quanto mais dentro de si fica, mais se integra ao Universo e aprofunda sua sensação de pertencimento. Ali os habitantes são outros, as vozes lhe chegam sem som. Gilberto Gil já cantou: “Se eu quiser falar com Deus, tenho que subir aos céus, tenho que calar a voz”. Em dias de sensibilidade aguçada, amplia-se a possibilidade de ser intensa, generosa, e a sensação de liberdade abre os horizontes. É permitido se sentir plena, feliz, em paz profunda!
Manhãs de chuva e vento frio, aumentam essa sensibilidade em Maria. Gosta da luz, da claridade que ilumina a caminhada interna. Nem sempre é na penumbra ou no isolamento que as reflexões ocorrem. Hoje, em especial, é na convivência íntima com a natureza que a cerca. Há apenas o ser vivente, enamorado das belezas proporcionadas por uma energia cósmica, inimaginável quando se segura o foco no mundo concreto. Tudo e nada se confundem. Impelida pela angústia Maria busca a solidão que lhe permita encontrar argumentos para sua existência.

Não foi fácil sentar para escrever. Trazer os pensamentos do nada para o vazio das letras. Sentir a pressão do tempo fatiado nos ponteiros do relógio. Olha-se no espelho. Quando amanhece num dia chuvoso, de estonteante claridade, está, de certa forma refletindo o que tem na alma. O dia favorece os voos platônicos, mas o espelho permite retê-los. Entre o ideal e a realidade fica o sentimento de que a solidão não é só dela, é humana. Harmonizada com a consciência universal, não está sozinha. Sem delírio ou fanatismo, Maria quer saber se você a acompanha, a não andar, a não falar, a não ter o que trocar a não ser o silêncio.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Apenas moinhos de vento

Maria se emociona ao ver aquela paisagem pela primeira vez. Tudo lhe parece familiar, afinal passara parte de sua vida tendo a fantasia como ferramenta de trabalho e, naquele instante, o que lhe vem à mente é o mito quixotesco que permeou sua literatura. Lutou sim com enormes e cruéis gigantes que, ao final, se transformaram em moinhos de vento, só mesmo para lhe roubar a glória da vitória. E como Quixote, sua luta sempre foi solitária. Arremessou-se sozinha contra todos. Ganhou batalhas em números idênticos às que foi derrotada. Tornou-se mestra em oximoros, em aproximar sentimentos antagônicos, em rir da dor e chorar de alegria. Apostou suas fichas na vizinhança do impossível. Mas viu moinhos se transformarem em gigantes e era isso o que importava. 
Se a luta contra moinhos de ventos é o paradigma da luta inútil, Maria, finalmente, encontrava seu caminho e assumia sua fantasia. Qual era sua alucinação naquele momento? O medo de viver ou de morrer? Entendia profundamente a ficção e a realidade, mas a ela não importava a inutilidade, desde que a entendesse como necessária para seu desejo e, portanto, necessária para o mundo. De suas fantasias alicerçou a ponte para a realidade e pavimentou a realidade com fantasia. A vida lhe pareceu mais suportável. Naquele momento Maria não apenas realizava uma de suas inúmeras viagens imaginárias e fantásticas,  também pincelava de realidade o que um dia não passou de alucinação. 



quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Assim mesmo eu costuro

La jeune ouvriere, de Willian Bouguereau
Enquanto remenda as roupas Maria se entrega a seus pensamentos. Seria tão bom se pudesse remendar também sua vida. Algumas costuras ficaram frouxas precisando de um nó mais apertado para que não se desfizessem com o passar do tempo. Velhas e rotas, seus andrajos colam em seu corpo,  seguem-na, perseguem-na, roubam-lhe a liberdade. No silêncio de seus pensamentos busca respostas, caminhos, soluções e a certeza de felicidade possível. Para reaprender a viver terá que romper velhos hábitos, renovar ideias, buscar esse fenômeno catalisador já que o corpo não se renova.
Mergulhada em seus pensamentos enquanto costura, cada nó antecede uma sequência de pontos, assim como as indagações que faz. As vivências, as observações, o estudo, forma seu pensamento, mas naquele momento, a vida real passa pela linha e pela agulha.  Costurar é isso.  Decifrar pensamentos e observações, expressar-se na delicadeza ou firmeza dos pontos, vivenciar o silêncio da atividade e também ouvir e identificar as milhares de vozes e a calar outras. Isso dá conteúdo ao seu trabalho. Nem carne quebrada, nem nervo rendido, apenas o ato de coser para estimular o pensamento.
Trilhar o mundo interior é uma experiência que exige equilíbrio, compreensão. Nem tudo é brilhante e muitas vezes Maria se vê obrigada a lidar com as sombras, com suas sombras. Busca a luz para passar a linha na agulha, busca a luz para encontrar a direção na vida, porque há caminhos que brilham mais, exercem maior fascínio e a tendência natural é que a de se deixar levar pelo que dá mais prazer, como na hora de escolher uma agulha grossa que não dará a perfeição no remendo, mas facilitará o processo. Maria é humana, simplesmente humana e é na convivência consigo mesmo que ela provoca perguntas que não encontram respostas, a menos que haja um firme propósito de disciplinar-se, de aprender com a própria imperfeição. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Paris no túnel do tempo



Evening Beauty, de Mark Spain


Olhando aquele cenário diferente, cheio de histórias e rico em detalhes arquitetônicos, Maria se vê, de repente, lembrando conteúdos que preencheram suas primeiras incursões na alma humana. Não vai se encontrar com Ernest Hemingway, Proust,  Cole Porter, Luis Bruñuel, ou Picasso, ou mesmo Sartre, mas espera por aquela sensação nostálgica que a inspire e a encoraje a escrever, mesmo em relação àquilo que não viveu.

Toda cidade tem suas peculiaridades humanas, aquelas que podem até ser integradas às paisagens, mas estão intrinsecamente ligadas ao comportamento humano. Algumas são típicas de determinadas personagens. Lembro-me, da minha infância, de Judith, que inaugurou o bundaço como protesto e rebeldia aos padrões da época. Mal imaginava ela que um dia isso seria moda. Mas em minha cidade de origem havia outras figuras diferentes, como as minhas xarás “Maria Taquara” e Maria Bobó. A primeira se vestia de homem, desafiava os padrões sociais.  A segunda, mais ingênua e mais coquete,  se enfeitava com laços coloridos de papel crepom para acompanhar as procissões. Aqui em Goiás uma dessas excêntricas personalidades virou boneca: Maria Grampinho, que assim como Mari Bobó gostava de se apresentar bonita e prendia seus cabelos rebeldes com inúmeros grampinhos.

Mas não são só as Marias, as cidades também têm Joãos e Pedros que se destacam por sua singularidade. Em meu setor, João não escapava da observação de minha avó e chegava a lhe arrancar sorrisos. João conta os passos, mas sempre se esquece no meio da contagem, então ele volta atrás – certamente de onde imagina que perdeu os números – e começa tudo de novo. Então, observar a caminhada de João é como assistir a uma dança diferente, não apenas pelo gingado que impõe ao seu corpo, mas pelos volteios, giros e “promenades”.


É. Maria foi buscar a Paris que inspira e encanta e isso é meio surreal, não se mede por números de passos dados, mas por uma contagem interna que certamente terá, muitas vezes, que ser retomada. Não há possibilidade real de se viver outra época, sem que esta se torne também uma prisão. E nas prisões, a criatividade se esgota. Talvez por isso Maria tenha buscado suas primeiras referências, para conhecer a Paris, que como ela, vive de suas histórias. Ao mesmo tempo, usa seu olhar e abertura de alma para deixar o novo entrar. 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Coração em festa

James Shannon
Ainda é primavera no coração de Maria. As manhãs são sempre barulhentas. Gorgeios de pássaros e cigarras começam muito cedo. No ar o cheiro de flores toma conta do ambiente. A cidade se veste inteira de flamboyants e bougainvilles de coloridos vivos. Os canteiros das avenidas readquirem seu verde intenso e se enfeitam de sempre-vivas, margaridas, azaléias, campânulas, petúnias e flores típicas do cerrado. Um brinde aos olhos do caminhante desatento. Não é possível ignorar tanta beleza.

Naquela praça,  naquele ponto perdido em algum lugar do espaço, as diferenças não mais existem. Não existe velho, nem novo. Não existe feio ou bonito, não existe perto nem longe. Apenas o mar de sentimentos tão intensos e imenso quanto o tempo que os separou. Nesse instante mágico são apenas dois amantes apaixonados alimentando o espírito e celebrando a vida, o renascimento, o reencontro.