segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O Julgamento de Sócrates

Desconheço o autor da imagem

               
Diante do tribunal popular, Sócrates é acusado pelo poeta Meleto, pelo rico curtidor de peles, influente orador e político Anitos, e por Licão personagem de pouca importância. A acusação era grave: não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. O relato do julgamento feito por Platão (428-348 a.C.) a Apologia de Sócrates, é geralmente tido como bastante fiel aos fatos e apresenta-se dividido em três partes. Na primeira, Sócrates examina e refuta as acusações que pairam sobre ele, retraçando sua própria vida e procurando mostrar o verdadeiro significado de sua "missão". E proclama aos cidadãos que deveriam julga-lo: "Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos de vossos corpos e de vossos bens do que da perfeição de vossas almas, e a vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública quer na vida privada. Se, dizendo isso, eu estou a corromper a juventude, tanto pior; mas, se alguém afirmar que digo outra coisa, mente". Noutro momento de sua defesa, Sócrates dialoga com um de seus acusadores, Meleto, deixando-o embaraçado quanto ao significado da acusação que lhe imputava - "corromper a juventude". Demonstra que estava sendo acusado por Meleto de algo que o próprio Meleto não sabia bem explicar o que era, já não conseguia definir com clareza o que era bom e o que era mau para os jovens.
Em nenhum momento de sua defesa - segundo relato platônico - Sócrates apela para a bajulação ou tenta captar a misericórdia daqueles que o julgavam. Sua linguagem é serena - linguagem de quem fala em nome da própria consciência e não reconhece em si mesmo nenhuma culpa. Chega a justificar o tom de sua autodefesa: "Parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se absorver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convence-lo". Embora a demonstração pública da inconsistência dos argumentos de seus acusadores e embora a tranqüila e reiterada declaração de inocência - e talvez justamente por mais essas manifestações de altaneira independência de espírito -, Sócrates foi condenado. Mesmo para uma democracia como a ateniense, ele era uma ameaça e um escândalo: a encarnação, para a mentalidade vulgar, do "escândalo filosófico" que, ali mesmo em Atenas, acarretara a perseguição de Anaxágoras de Clazômena, que se viu obrigado a fugir.
Como era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena. Meleto havia pedido para o acusado a pena de morte. Mas seria fácil para Sócrates salvar-se: bastava propor outra penalidade, por exemplo pagar uma multa, como chegaram a lhe sugerir os amigos. Afinal, fora difícil obter um veredicto de culpabilidade: havia sido condenado por uma margem de apenas sessenta votos. Qualquer pena moderada que ele mesmo propusesse seria certamente acatada com alívio por aquela assembléia constrangida por condenar um cidadão que, apesar de suas excentricidades e de suas atitudes muitas vezes irreverentes e incomodas, apresentava aspectos de indiscutível valor. Afinal, era aquele o Sócrates que não se havia deixado corromper pelos tiranos, inimigos da democracia, e que lutara bravamente na guerra por sua cidade e por seu povo. Bastava que declarasse estar disposto a pagar algumas moedas - e todos sairiam dali satisfeitos consigo mesmos, por terem cumprido o "dever" de punir um cidadão suspeito de atividades nocivas a cidade, e mais contentes ainda por se sentirem magnânimos, ao permitirem que continuasse vivendo.
Mas Sócrates não faz concessões. Propor-se a cumprir qualquer pena, mesmo pagar uma multa, por menor que fosse, seria aceitar a culpa de que não o acusava a própria consciência. Na segunda parte da Apologia, Platão descreve o momento em que, novamente diante de seus juízes, Sócrates estabelece a pena que julgava merecer. Nem exílio, nem multa. "Ora, o homem (Meleto) propões a sentença de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de propor em troca, Atenienses? A que mereço, não é claro? Qual será? Que sentença corporal ou pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente - riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, coisas em que me considero de fato por demais pundonoroso para me imiscuir sem me perder -, não me dediquei àquilo a que, se me dedicasse, haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu do que de si próprio, para a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado o mesmo princípio nos demais cuidados? Que sentença mereço por ser assim? Algo de bom, Atenienses, se há de ser a sentença verdadeiramente proporcionada ao mérito; não só, mas algo de bom adequado a minha pessoa. O que é adequado a um benfeitor pobre, que precisa de lazeres para vos viver exortando? Nada tão adequado a tal homem, Atenienses, como ser sustentado no Pritaneu; muito mais do que a um de vós que haja vencido, nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas. Esse vos dá a impressão da felicidade; eu, a felicidade; ele não carece de sustento, eu careço. Se, pois, cumpre que sentenciam com justiça e em proporção ao mérito, eu proponho o sustento no Pritaneu."
Sócrates não deixava saída para seus juízes. Ou a pena de morte, pedida por Meleto, ou ser alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo, como herói ou benemérito da cidade. Impossível voltar atrás, desfazer a condenação, inocentar o acusado. Entre a morte e as impossíveis recompensas, ou juízes ficaram sem alternativa real. Para não abrir mão de sua própria consciência, Sócrates optara pela morte. Que então morresse.



Immanuel Kant, Introdução à crítica do juízo. 2 ed, [Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho], São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Os Pensadores) 

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A velha do rio

2005
Marley Costa Leite

James Abbot McNeill Whistler
Pela primeira vez, em mais de quarenta anos, Maria se arrisca a atravessar as águas cristalinas do rio, para ver o que realmente existia na outra margem. Eram muitas lendas passadas de boca em boca desde a sua infância. A travessia já lhe remexia as entranhas e traziam à tona todo tipo de lembrança, de antigos amores, alguns que morreram naquelas mesmas águas, de um piquenique num domingo à tarde, quando duas amigas foram tragadas ao mesmo tempo. O rio não era largo, mas de águas frias e profundas.
Maria chega à outra margem quase morrendo de frio. Não tem como se aquecer, a roupa molhada grudada em seu corpo faz com que a sensação de frio seja aumentada. As extremidades, mãos, pés e nariz estão doloridos e ela mal consegue se movimentar. Coloca-se a caminhar, quem sabe encontra alguém ou algum lugar para se recuperar antes de iniciar seu caminho de volta.
Uma das muitas lendas que existia sobre o lugar é que ali morava uma bruxa malvada, que atraía as crianças que brincavam no rio e as transformava em escravas. Maria ri com as lembranças. Já estava muito grande para acreditar em histórias de bruxas e até de fadas.

A mata que margeia o rio é fechada e escura, ouve-se o som de muitos animais, pássaros, mas que ela não consegue identificar a origem. Ela caminha, dividida entre o sentimento de arrependimento e de curiosidade, até chegar a uma clareira que tem uma choupana.
- É verdade, pensa ela, a bruxa do rio existe. E agora o que faço?
Pensa em voltar correndo, mas uma voz a torna estática.
- O que aconteceu filha? Você está tremendo, com os lábios roxos...
- Estou com frio. E também estou com medo.
- Meu nome é Batica. Moro aqui há muitos anos e sei que do outro lado do rio existem muitas histórias a meu respeito, mas não tenha medo. Eu estava mesmo esperando que você viesse até aqui, há muito tempo.
- Como? A senhora me conhece?
- Conheço os segredos do tempo e do espaço. Mas venha, você está ardendo em febre. Deixe-me cuidar de você.

Maria entra com dona Batica no casebre e se encanta com o que vê. Tudo muito simples, muito pobre, mas extremamente limpo e organizado. Ela pede que Maria tire a roupa e se deite na cama, enquanto prepara umas ervas. Maria não sente forças para recusar qualquer pedido, mas tem uma estranha sensação de segurança e deixa a situação fluir sem a sua racionalidade.

Dona Batica cobre todo seu corpo com as folhas e, apesar de estarem em infusão na água quente, a sensação de frio aumenta e Maria não consegue parar de tremer. Depois ela pega um plástico e um cobertor e coloca sobre Maria. Senta-se a um canto com um tambor e batendo um ritmo harmônico, entoa algo que mais se parece com um lamento indígena. Começa se aquecer e se entrega àquele aconchego, sente que vai adormecer. Desperta, não sabe quanto depois. Está revigorada, não se lembra de muita coisa naqueles três dias, apenas que teve muitos sonhos, alguns feios, outros lindos. Procura por dona Batica, quer agradecer-lhe, mas não encontra qualquer vestígio. Nem tambor, nem folhas no seu corpo, apenas o casebre, nem tão limpo, nem tão organizado. Chama-lhe atenção um detalhe que não observara quando chegou. Tem um lindo jardim de lírios muito brancos na frente. Delírios? Que importa? Aquele era o descanso que há muito ela precisava, esgotava-se de suas angústias, enchia-se de novo de esperança. Levanta-se, veste as roupas que já estão secas e inicia seu caminho de volta.