sábado, 5 de fevereiro de 2011

Padre, eu pequei!

Imagem: Madalena (autor desconhecido)


- Alô. Você sabe quem está falando?
- A voz não me parece conhecida, mas o sotaque é bem familiar. Lembra o da minha terra natal.
- Seria de estranhar se você se lembrasse da minha voz. Há mais de 20 anos que nós não nos falamos.

A essa altura o coração de Maria já batia disparado. Estava casada, com um neném pequeno, e aquela voz, tinha o poder de desequilibrá-la internamente.
- João? É você?

Depois da procissão, Maria se desfaz da fantasia de anjo para assumir sua verdadeira identidade. Uma menina magrinha, bonita, irrequieta, inteligente e muito esperta. Muito católica, ela goza da confiança e admiração do pároco da Igreja que, a despeito de sua pouca idade, confia a ela tarefas de adulto. Feliz, ela coordena toda a movimentação da quermesse. Há mais de uma semana ela trabalhava cada detalhe, fazia escalas, definia atividades e brincadeiras, sempre com o intuito de angariar fundos para a paróquia.
Toda essa atividade e desempenho não passaram despercebidas a seu professor,  um clérigo de apenas 22 anos de idade e muito bonito. Beleza sempre conta entre adolescentes.
Desde que se transferira do colégio das freiras para o colégio dos padres, Maria provocara um verdadeiro rebu na escola, que antes só recebia alunos do sexo masculino. Na pequena cidade, as opções eram poucas, as meninas que estudavam no colégio das freiras, ao terminarem o ginásio, só tinham como alternativa ir para a Escola Normal, ou para a Escola Técnica de Comércio. Se pretendessem uma faculdade, teriam que partir para o curso científico no único colégio estadual da cidade. Já para os meninos era diferente. Eles tinham a opção de continuar com os padres, ir para o colégio estadual, e ainda poderiam estudar na Escola Técnica Federal, considerada a melhor da região, que naquele tempo também só aceitava homens.
Maria não pensou duas vezes, organizou uma comissão e foi para o colégio dos padres pleitear a abertura de matrículas para as meninas. Até então, o único contato entre as duas escolas era no dia 7 de setembro, quando a fanfarra masculina tocava no desfile (e nos ensaios) das meninas. Sempre motivo de muita dor de cabeça para as freiras. A comissão foi tão convincente que o padre diretor abriu uma turma noturna para receber as alunas. Acabou tendo muito mais sucesso que o esperado. Já no primeiro ano, eram três classes mistas. No entanto, não foi tudo simples. Às meninas só faltava enlouquecerem com os aprendizes de padre. Começou então  divertido jogo de cartas na tentativa de tentarem os santos rapazes. Três deles faziam muito sucesso,  e a diferença de idade deles para as alunas não era superior a 5 anos. Maria era "quente" na escrita e escrevia cartinhas para as colegas.

Naquela noite, João, um dos clérigos, estava na quermesse. Não falou com Maria, mas não desgrudou os olhos dela ,  que fazia a farra com o correio elegante. Ela ficou preocupada. Sentia o olhar que a acompanhava, que a desnudava em sua ingênua esperteza. Ela era normal como suas colegas, no auge de seus 15 anos, exuberante em sua beleza, era  natural que também se sentisse atraída por aquele rapaz lindo, bem falante, inteligente, bem educado e de bons princípios. Escrever para ele era fácil. Deixava fluir o que tinha na alma, escudada pelo nome das amigas. Mal conseguiu dormir naquela noite. Sentia que seu coração lhe preparava uma peça.

Domingo. Maria chega à missa no último toque do sino. A igreja estava lotada, mas ela tinha lugar reservado na frente, porque era responsável pela primeira leitura. Ao atravessar a igreja, sente um gelo na barriga. João estava lá, sentado discretamente entre as pessoas e, na simples travessia, ela conseguiu identificar de onde vinha o olhar que a queimava como um raio.
A missa foi uma sequência de pecados, por pensamentos. O pecado por palavras e obras só aconteceria depois da missa, quando João se ofereceu para acompanhá-la até em casa e no meio do caminho disse a ela que se apaixonou pela autora das cartas assinadas com os nomes de suas colegas, mas como professor , ele conhecia o estilo e potencial de cada uma delas.
Antes de chegarem á casa de Maria os dois se sentaram no banco de uma praça e o beijo que trocaram selaria um pacto de silêncio de 22 anos.

- Meu Deus, como você está? Já é bispo? Sempre tive vontade de receber notícias suas.
- Eu não sou sacerdote. Sou professor da Universidade.

A conversa segue o ritmo das lembranças até que foi interrompida bruscamente.

- Preciso desligar, minha esposa está entrando.

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