Imagens de John William Godward
Mal os primeiros raios da manhã despontam no horizonte e Maria acorda. Bem antes do horário habitual. Está especialmente triste. Especial usado aqui, como João sempre frisa, no sentido de ter alguma significação, de levar coisas boas. Ainda que seja muito especial, é uma tristeza. Profunda. Maria tenta passear por seus labirintos mentais à procura dos reais motivos. Seu corpo chora com saudade. Sua alma pede alimento. Pensa que precisa comprar dois livros para presentear João: O Amor nos Tempos do Cólera, de García Marquez, e Auto de Fé, de Elias Canetti. Levanta-se com a firme idéia de pedir pela internet e mandar entregar no endereço dele. Já ao computador lembra-se que não tem o endereço. Precisa esperar. O tempo de espera começa então a produzir seus questionamentos. O tempo chega para todo mundo e quando amadurecemos adquirimos a sabedoria de nos recolhermos. A cada recolhimento, a quietude interior nos proporciona reflexões, acolhimento e a sensação de uma solidão amiga. Aprendemos a chorar as dores das perdas, a mágoa, o desengano e infalivelmente aprendemos a contar os nossos dias com o coração mais sábio.
Maria não sabe se vai comprar os livros. Talvez o momento seja adequado para uma releitura, e isto também será um desafio para ela. Sempre ávida por leitura, indisciplinada – não gosta de parar quando começa – nunca achou sentido no retorno a um mesmo livro, a não ser que fosse para pesquisa. Certamente este era momento de pesquisa de si mesma, seus valores, suas dúvidas e suas certezas.
A improdutividade do dia anterior a deixava com sentimento de culpa, principalmente em relação a João. Ela o atrapalhava. Do mesmo modo, a presença distante dele também a perturbava. Precisava colocar as emoções no lugar, reequilibrar-se, mas não sabia como fazer isso sem quebrar a aura de sonho. Não apenas ouvir as palavras, as entonações, mas ouvir as pausas, os intervalos silenciosos, como lê as entrelinhas. A intenção era apenas superar a distância, dar a impressão de que estavam próximos, mas a estratégia estava dando errado. João e Maria precisam encontrar outra forma para alimentar o amor que sentem, ou deixar que ele morra de inanição. Para João esta é uma possibilidade mais palpável que para Maria. O amor dele por ela é novo, ainda que ele se sinta constrangido em admitir. Para Maria, entretanto, sempre foi uma sombra – ou seria uma luz? –que a acompanhou durante toda a sua vida. Ela terá que buscar nos detalhes. Encontrar elementos que a façam ver João de forma mais real, não é o que ela quer. Não pode e não quer trazer João para o nível da realidade. Ela o quer para sonho, para amar, para dar colorido à sua vida cinzenta, plena de responsabilidades.
Como o homem primitivo, ela aprendeu a fazer operações mentais complexas, com rapidez fulminante. Pelo rastro deixado, ela podia ler as pistas mudas. A situação fugia ao seu controle e mais do que ninguém ela sabia farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais. Muitas vezes, os indícios imperceptíveis para a maioria, forneciam-lhe a chave para o que o outro pretendia ocultar. Situações incontroláveis são especiais em fornecer estes elementos, pois desencadeiam atividades inconscientes. É bem verdade que a interpretação correta é diretamente proporcional à distância emocional do observador e Maria está emocionalmente envolvida, o que compromete a sua avaliação.
Desistir, no entanto, não é a solução. Lutar sim, sem perder de vista que há uma interdependência entre o individual e o coletivo. Esta dualidade que coloca Maria no centro do conflito milenar entre o bem e o mal, entre o bom e o mau. Nem sempre os anseios de ordem material coincidem com os de ordem espiritual.
João disse que Maria o estava viciando com suas mensagens de bom dia. Criar necessidades é como amarrar nós para o futuro. Sem clareza interna quanto à sua intenção, Maria decide recolher-se e buscar no escudo da consciência a certeza de que suas escolhas foram guiadas pelo desejo de harmonia. O processo deverá ser lento, assim como é a aprendizagem, mas não quer passar o tempo que lhe resta de vida, sem entender o que acontece em suas entranhas. Ser guerreira faz parte do seu temperamento, mas importante é ser leal aos princípios e não abandonar a luta. Olhando para dentro Maria pode ter a segurança de que não há vitória se não há crescimento interno. Conhecer-se significa não ter medo das próprias sombras. Maria sabe mergulhar em águas profundas e encontrar-se no silêncio.
Maria é mulher, fala de vida, de experiência, de sentimentos, de sexo, de lições e apreendizado, um universo identificado por qualquer mulher (e até mesmo homem). Ela sou eu, a outra, todas elas, qualquer mulher, uma mulher qualquer. É a mãe, a dona de casa, a profissional, a prostituta, a religiosa, a vencedora, a fracassada, a lutadora, a cansada, a jovem, a velha, a sábia, a louca. Não é Maria por acaso.
A tartaruga marca o tempo... Sou fã das imagens que vc coloca. Completam o pensamento de Maria, sempre buscando a sua lucidez.
ResponderExcluirA idéia foi exatamente essa: marcar o tempo, que tem sido meu algoz...
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