quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Maria, carnaval, cinzas e ressurreição

Nasceu Maria quando a folia não alcançava mais o dia. Em meio às cinzas percebe que como a Fênix precisa ressurgir, retomar sua vida, libertar-se do mau humor, da raiva pela vida. Maria precisava desse tempo de hibernação, e a impossibilidade de viver o seu silêncio a empurrava para um estado de estresse constante. João era um bom companheiro no silêncio e lhe deu o direito de espernear, gritar, revoltar-se com a situação, mas até com ele, Maria conversava pouco. Vivia uma fase difícil, muito pessimista, perdendo a paciência facilmente. Assim como ele, precisava do silêncio para alinhavar seus novos pensamentos. Mas não tinha, mesmo se quisesse, como se isolar. Foi nessa época que começaram a decidir o que ela devia fazer de sua vida, como deveria se comportar, como deveria reagir, como deveria ser sua alimentação. As pessoas achavam que ela estava deprimida, mas não era nada disso. Maria estranhava não ser mais dona de sua vida, mas sabia que existiam fases que ela precisava viver. Ela precisava entender tudo que havia se passado e para isso precisava estar a sós consigo. Gostava de conversar com algumas pessoas, mas havia coisas e situações que a deixavam com a sensação de perda de tempo. É como se soubesse a data da sua morte e quisesse aproveitar cada minuto que lhe reatava apenas com coisas que gostava. Não queria nada que lhe criasse necessidades, nada que a empurrasse para o comum dos dias. Voltar a trabalhar não havia sido uma boa idéia e ela se sentia cada vez mais vulnerável às contingências do ambiente. Maria entendia com grande clareza que não gostava mais de ser jornalista, que seu talento para escrever poderia sobreviver sem ter nada a ver com a inutilidade da profissão. Estava muito cansada e a pressão externa a deixava profundamente irritada. Para sua surpresa, ela não se sentia na obrigação de esconder seus sentimentos. Enfim qualquer que fosse a sua escolha, teria sempre que lidar com coisas boas e ruins. Maria só precisava curtir seu momento, seu silêncio. Precisar desse momento de quietude e calmaria não significava nenhuma crise existencial, antes, significava que estava consciente que a pausa faz parte do ritmo. Significava também, que tinha coragem suficiente para enfrentar a angústia - e até o desespero – da existência. Poderia questionar e nunca encontrar respostas, mas também poderia se satisfazer com possíveis respostas encontradas. Importante mesmo é emergir das reflexões com a alma renovada. Maria acorda naquela quarta-feira de cinzas sentindo-se diferente. Entendia a boa vontade das pessoas em ajudá-la, em se esforçarem para que ela não sucumbisse diante da doença, mas se ela cavava um fosso entre ela e o mundo, o mundo o aprofundava ainda mais querendo que ela fosse a mesma. Ela nunca mais seria a mesma e não conhecia palavras que pudessem explicar seu estado de espírito. Não tinha como pedir desculpas porque estava em processo de derrubada de máscaras. Foram ciclos bem definidos: enfrentou a doença, lutou contra a depressão, buscou o silêncio, irritou-se, revoltou-se, reagiu, acalmou-se, e finalmente, compreendeu que precisava ter paciência. Ainda que fosse estranha a sua atitude, ela se fechara para se proteger, para não sentir pena de si, para conhecer a intensidade e o limite de sua força interior. Não imaginava que isso fosse incomodar tanto. Passou! Está passando...

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

És Ferramenta?

Imagem:Kagaya Você que trabalhou, batalhou, criou os filhos, envelheceu... Os filhos cresceram, saíram de casa, você se aposentou... E agora o tempo se estende vazio à sua frente, pouco importa levantar-se cedo ou tarde, não faz diferença, os dias ficaram todos iguais, não há batalhas a travar, ninguém precisa de você... Cada dia é um peso, é preciso matar o tempo, descobrir um jeito de não pensar, pois o pensamento dói, e vem uma vontade de beber, uma vontade de esquecer, uma vontade de morrer... Chegou o momento da inutilidade, e é isso que você não suporta, pois lhe ensinaram (e você acreditou) que os homens e as mulheres são como as ferramentas, que só valem enquanto forem úteis. Ensinaram-lhe que você é uma ferramenta que merece viver enquanto puder fazer. E agora que o seu fazer não faz mais diferença, você se coloca ao lado dos objetos sem uso. À espera de que a morte venha colocá-lo no devido lugar, pois nada mais há que esperar. Você está sem esperança. Mas lhe ensinaram mal, muito mal. Pois nós não somos ferramentas. Não vivemos para ser úteis. Dizem os textos sagrados que Deus trabalhou seis dias para plantar um jardim. Terminado o trabalho, já não havia nada mais para ser feito. E foi justamente então que Deus sentiu a maior alegria. Terminado o tempo do trabalho, chegara o tempo do desfrute. E o Criador se transformou em amante: entregou-se ao gozo de tudo o que fizera. Com as mãos pendidas (pois tudo o que devia ser feito já havia sido feito), seus olhos se abriram mais. Olhou para tudo e viu que era lindo. Pôs-se a passear pelo jardim, gozando as delícias do vento fresco da tarde. E, embora os poemas nada digam a respeito, imagino que o Criador tenha também se deleitado com o gosto bom dos frutos e com o perfume das flores - pois que razões teria ele para criar coisas tão boas se não sentisse nelas prazer? Se há uma lição a ser aprendida desses textos, lição que é que não somos como serrotes, enxadas, alicates, fósforos e lâmpadas que, uma vez sem o que fazer, são jogados fora. A nossa vida começa justamente com o advento da inutilidade. Pois o momento da inutilidade marca o início da vida de gozo. Nada mais preciso fazer. Travei as batalhas que tinha de travar. Nada devo a ninguém. Estou livre agora para me entregar ao deleite. Todas as escolas só nos ensinam a ser ferramentas. Será preciso que você procure mestres que ainda não foram enfeitiçados por elas. Você deve procurar as crianças. Somente elas têm o poder para quebrar o feitiço que o está matando ainda em vida. As almas dos velhos e das crianças brincam no mesmo tempo. As crianças ainda sabem aquilo que os velhos esqueceram e têm de aprender de novo: que a vida é brinquedo que para nada serve, a não ser para a alegria! Desde os seis anos tenho mania de desenhar a forma das coisas. Aos cinquenta anos publiquei uma infinidade de desenhos. Mas tudo o que produzi antes dos setenta não é digno de ser levado em conta. Aos 73 anos aprendi um pouco sobre a verdadeira estrutura da natureza dos animais, plantas, pássaros, peixes e insetos. Com certeza, quando tiver oitenta anos, terei realizado mais progressos, aos noventa penetrarei no mistério das coisas, aos cem, por certo, terei atingido uma fase maravilhosa e, quando tiver 110 anos, qualquer coisa que fizer, seja um ponto, seja uma linha, terá vida. Vamos! A vida é bela. Pare de namorar a morte! Beba a taça até o fim!" Por Rubem Alves Também publicado em: http://wagnerdeluca.blogspot.com/2012/01/es-ferramenta.html