segunda-feira, 28 de julho de 2014

Ferida na alma

Monachof Love, de Rassouli
Tento evitar, quero esquecer, mas ainda não consegui, e hoje, foi a primeira coisa que me lembrei ao levantar. Há exatos três anos começava um processo transformador em minha vida, por fora e por dentro.  Retirava o primeiro quadrante de minha mama esquerda. Treze dias depois iriam as duas, inteiras. As marcas são tão profundas, que só mesmo quem passou ou passa pela experiência é capaz de aquilatar os sentimentos desencontrados que tomam conta da gente. Não é o medo da morte, mas a forma como morrer; a vida que se deixou de viver, adiada tantas vezes à espera de um tempo mais favorável. É a certeza de que a vida não termina ali, mas o futuro que se descortina é completamente desconhecido, impossível de ser planejado e os planos possíveis não poderão mais ser a longo prazo. 
Até hoje não consegui decifrar a raiva que senti de tudo e todos que amava. Bendito silêncio. Impediu que eu ferisse mais, pessoas tão queridas. Não existe perdão, não existe justificativa, apenas a pergunta: onde está quem sempre fui? Tempo em que não me reconhecia, embora o espelho refletisse quase a mesma imagem de sempre. Também não era a falta das mamas, elas foram reconstruídas e em seis meses o resultado era surpreendente.  Era alguma coisa mais profunda que ainda persiste e que me leva aos períodos silenciosos em busca de mim.

Desde então tenho percorrido meus labirintos, e se às vezes me sinto isolada do mundo, na maioria, tenho a íntima certeza que faço parte de algo maior, sinto as pessoas como parte de mim. Se às vezes sou rabugenta, intolerante, impaciente, na maioria, sou tomada de amor, compreensão, paciência. Chego até a ser permissiva. Sou mais coletiva que individual.  De tudo só consigo entender que o câncer pode ser extirpado do corpo, mas não sai da alma. Fica ali,
 como um guardião interno, um guia na defesa espiritual, no auxílio à comunhão com minha verdadeira natureza. É a companhia no imenso vazio, a convicção da necessidade de rupturas e desencontros para que a verdade possa emergir do silêncio.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

No ritmo do tempo





Winter, de Maureen Hyde
Há dias de inspiração
Há dias de silêncio.
Há dias de transição.
Há dia de pausa.
Tempo para girar o foco
Tempo de voltar para dentro.
Tempo de intimidade e repouso.
Tempo de solidão amiga.
De ordenar sentimentos desencontrados.
De frear a pressa, a vaidade,
a paixão desenfreada.
Tempo em que passado e futuro
se encontram no mesmo ponto.
Dias de acolhimento.
Dias de nova reflexão.
Há dias de verdade
Tempo para compreender
e se entender com a própria existência.
Tempo de harmonizar diferenças.
Há dias de intuição.
De viver cada tempo.
Dias de viver com clareza.
No intervalo de tempo
o xeque mate à realidade.
Um silêncio de atitudes.
A cada pausa, um novo recomeço.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Em surto, surtadinha!


Laura Pritchett

Já sentada no carro, Maria arruma e retrovisor para dar ré e sair da garagem. É a primeira vez que se olha no espelho. Cabelos molhados totalmente desgrenhados. Essa é a imagem que vê. Havia se esquecido de pentear os cabelos. Na viagem até o trabalho ela vai se lembrando de outras coisas que esquecera: os telefones dos médicos e da dentista que terá que marcar consultas, a receita do remédio do pai, as pesquisas do novo projeto, o pneu que deveria ficar no borracheiro. Já no trabalho começa por responder os e-mails. No primeiro segue só o texto, sem o anexo. No segundo envia a imagem errada. No terceiro... ah! Desiste. Melhor respirar e colocar tudo no lugar. Maria está em surto!

PS. Alguém seria capaz de adivinhar quantas vezes postei e deletei (sem querer) este post? Prêmio surpresa para quem adivinhar.

Sinfonia da solidão

Carl Vilhelm Holsoe (1863-1935)
A Lady Playing The Piano
Há dias ruidosos e dias musicais. Para silenciar o ruído preciso sempre de uma boa música. Começo então por selecionar as músicas que me farão companhia nesta experiência nada inédita de me buscar em meio ao caos interno. Algumas músicas me acalmam e me conduzem a um estado de serenidade. Outras, com ritmos mais vibrantes, me convidam a dançar, sacudir o corpo, acompanhar a percussão com os pés. Outras ainda evocam lembranças, criam imagens. Mas todas mexem com meu interior. Assim, a música cumpre sua função de me tirar do cotidiano e me transportar para uma aventura desconhecida, mas muito familiar, de descobrimento e encantamento interior. É... O caminho de volta para si mesmo é solitário e particular. Como a música, o que aqui escrevo é apenas minha experiência, que, compartilhada, pode acender o estopim de alguns, mas sem o compromisso de provocar uma grande explosão. A aventura está em descobrir a chave que abre algumas câmaras secretas.

O som do silêncio


Venus and the Sleeper, de Steven J Levin

Há dias barulhentos e há dias silenciosos. Dias em que as palavras morrem sufocadas no desejo de apenas observar. A visão crítica sobre o mundo e as pessoas desenham minha estrada para o silêncio: a má vontade em procurar algo novo, a sensação de já ter visto tudo, as reprises com personagens diferentes, o mundinho em que os indivíduos se fecham como donos da verdade... Estou parecendo ser dona da verdade, não é mesmo? É por isso que treinar o olhar me leva ao silêncio. São pequenas verdades e, no entanto, tão minhas, tão íntimas, que partilhá-las me parece incoerência. Vale para o que vivo, vale para o que sinto. Tagarelar sobre minha vida interior pode despertar dúvidas sobre minha sanidade mental. A vida vem e vai, pende para um lado, para outro, mas algumas experiências nos transformam para sempre. Está claro para mim que a maior batalha é travada comigo mesma, todos os dias. Nem ir além, nem ficar aquém do que é necessário para sobreviver e conviver.

Venus and the Sleeper, de Steven J Levin

terça-feira, 1 de julho de 2014

Fora da tormenta

Aphrodite, de Robert Fowler (1853 - 1926)

Maria está pensativa nesses últimos dias. São pequenos detalhes que tem para resolver, mas as circunstâncias parecem aumentar a importância deles. Além disso, são muitas áreas que tem que atender. Mas o que sente não é desânimo, é apenas aborrecimento, já que a vida insiste e apresentar tudo de uma só vez. Suas convicções são suficientemente robustas para enfrentar as adversidades. Está uma manhã bonita, de sol e céu azul, apesar do frio, que a inspira a pensar na vida, um exercício de se esvaziar de pensamentos para tão somente apreciar a harmonia e beleza da criação.
As palavras fogem e a poesia se acrescenta ao olhar, com o único propósito de sentir e reverenciar esse momento pleno. Lá fora, nada mudou: política, copa, trânsito mal humorado, filas em bancos, pontos de ônibus, hospitais. O cotidiano de lutas não permite que a contemplação passe dos momentos. Estado que Maria apenas visita, que se sujeita aos ciclos de seu humor, de sua capacidade de abstrair. É um estado que, aos olhos do mundo, se chama alienação. No entanto, os rumores que ouve, ao vivenciar esses momentos, não incomodam. Visita campos mentais, que nem todos terão o privilégio de conhecer.