quarta-feira, 10 de abril de 2013

Pois é... pra quê?

Mulher no espelho - Picasso


Liguei hoje para Maria. Ela anda sumida e muita gente tem me pedido para fazer essa ponte. Gostam de suas histórias. Encontro-a desanimada, mas cheia de atividades. Reserva um tempinho para mim e conversamos longamente. Os últimos tempos foram difíceis para ela, exigindo um esforço muito grande para se reestruturar, em todos os sentidos. As coisas que lhe aconteceram, as perdas que sofreu, atingiram-lhe como uma bomba que explode depois que a guerra termina. Foi necessário muita disciplina para não tropeçar e desistir da luta. Bastava um único pensamento negativo para abrir a porta secreta em seu interior e ela perceber, com clareza nunca imaginada, a batalha milenar entre o bem e o mal. Ela precisava de tempo para aprimorar o espírito.

Não era a primeira vez que tínhamos uma conversa dessa natureza, mas senti que navegava em águas muito profundas e que não conseguiria traduzir em palavras suas vivências, que deixavam transparecer a sensação de união com o Infinito. Parecia fugir para um oásis tranquilo de inatividade, que lhe permitia caminhar em si mesma com conforto e simplicidade. Maria me parecia esquisita, estranha, mas paradoxalmente feliz em seu projeto interior criativo, o que tornava nossa conversa uma atitude prática, renovada e aconchegante. Em suas reflexões, além de conhecer a si mesma, ela queria entender um pouco da natureza humana, o porquê dos instintos liberados sem censura que servem para destruir e magoar.

Ao desligar o telefone, refleti sobre tudo que conversamos e acho que também eu percebo de forma mais clara minha imperfeição e a importância de reservar um tempo para perscrutar a alma com determinação e disciplina mental.  Coloco uma música suave, fecho os olhos e começo acompanhando o ritmo de minha respiração. Aos poucos vou me sentindo mais leve. Tenho a sensação de andar por alamedas de flores balsâmicas, cujo aroma regenera minhas feridas. O som que ouço não é mais o da música, mas uma melodia desconhecida que parece me carregar por uma espiral à infinitude do espaço. Experimento então a sensação de liberdade, de solidão cósmica, de paz eterna. Compreensão que precisa ser colocada em prática. Liberdade que pode significar o resgate de pessoas e condições vividas que, acima de tudo, precisam ser compreendidas e respeitadas.  Além de meu mundinho existem outras pessoas no universo, com sentimentos tão contraditórios, e, assim como eu, travam lutas diárias para conseguir percorrer os próprios labirintos. Há que ter ternura no olhar e doçura nas palavras.

Podemos imaginar um tempo sem acontecimento, mas não um acontecimento sem tempo. E esse é o tempo de me entender com a existência. Sinto que, também eu, vivo um período de transição, de nova compreensão e preparação para outra fase. O tempo ensina que é possível viver mil vidas em apenas uma existência. A cada recolhimento, a quietude interior me proporciona reflexões, acolhimento e intimidade que torna a solidão amiga. Um silêncio necessário para colocar em ordem sentimentos desencontrados, perceber a inutilidade da vaidade, da pressa, da ganância, da paixão desenfreada. Choro as dores das perdas, a mágoa, o desengano, mas aprendo a contar os dias com o coração mais sábio. Encerro então com o que, um dia, Joseph Kern escreveu para mim: “Palavras nos faltam quando mais acreditamos que elas poderiam fazer alguma diferença. Elas podem tentar quebrar o isolamento e ecoar no silêncio, no vazio, em algum ponto do caminho. Um silêncio de atitudes que poderia ser preenchido com palavras fecha-se entre o silêncio e a solidão”.           

Resserenada, compreendo então o que é vivenciar um momento assim. Não há o que temer, não há medo, não há morte, não há luta, não há dor, não há tristeza.



terça-feira, 9 de abril de 2013

O Guaraná


de Dom Aquino Corrêa


O avô amanhecera aquele dia,
taciturno e tristonho.
Entanto, airosa,a neta vai à flor de fina grosa,
ralando o guaraná, com maestria.

E feita assim, por suas mãos de rosa,
numa salva de prata luzidia,
quão pura e perfumada não sorria,
no cristal, a bebida milagrosa!



Sorve-a o velhinho e ao seu influxo brando,
que desvanece as apreensões secretas, 
foi-se-lhe o coração resserenando.

E dentro em pouco, entre gentis carinhos,
recordando risonhas historietas,
brincava alegremente com os netinhos!