terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A hora da vingança



O estilo era o mesmo. João chegava de mansinho, desmanchando-se em gentilezas, mostrando uma discrição que jamais poderia ser confirmada na vida real. O tempo não conseguiu apagar a mágoa e agora tudo o que ela queria era a oportunidade de se vingar e desmascarar aquele homem. Ainda não sabia exatamente onde iria chegar aquela brincadeira, mas tinha certeza que o faria experimentar a mesma dor, a mesma desilusão.
Foram apenas quatro contatos. O suficiente para Maria perceber que João não valia mesmo a pena, nem como alvo de vingança. Maria era uma médica nutricionista de 45 anos, viúva, mãe de uma linda jovenzinha de 14 anos. A vingança, tão detalhadamente planejada, perdia seu sentido ao observar a fragilidade daquele homem. Era apenas um coitado, ávido, solitário, incapaz de manter relações duradouras e/ou profundas. Tinha limites, mas de alguma forma conseguia encobri-los com máscaras que não duravam muito tempo. Ainda tinha o detalhe da aparência que ele próprio não conseguia superar, a princípio, sempre muito sério, parecia um nerd. Não podia sorrir; faltavam-lhe dentes. Falava compulsoriamente sobre todos os best sellers, demonstrando que não tinha uma programação de leitura e a superficialidade nas análises comprovavam que "burro carregado de livro não é doutor".
Ainda assim, houve uma época em que Maria se deixou levar pela solidariedade. Fez todo o trabalho de editoração e revisão (quase reescreveu) do livro sobre comida, que aos poucos percebeu se tratar de uma tradução de obras americanas e, muitas, conservavam até o ranço dos americanos em relação aos latinos. Maria só percebeu que estava sendo usada em suas habilidades quando terminou o último capítulo do livro, de graça. A constatação a deixou muito irritada, chegou a ter dúvidas da sua lisura ética. Ela teria feito aquilo para qualquer pessoa que precisasse, sem precisar das mentiras, da perda de tempo emocional de ficar levantado a autoestima de um homem sem grandes atrativos.



Esparramada sozinha na cama de casal, entre quatro travesseiros, Maria aproveita a manhã de chuva para um passeio em seu interior. Os últimos tempos não foram convidativos para esses mergulhos; mágoas, desejos de vingança, impaciência, eram sentimentos que fechavam os portais e a jogavam para um isolamento cada vez mais difícil de romper. Não conseguir se ler, de alguma forma, a impedia de se escrever. Se não se escreve, também não se lê e acaba perdida dentro de uma teia tecida por ela mesma.
Busca a saída, mas os momentos de luz se tornam raros.
-Perdoe, ouve, sem identificar quem lhe fala.
Aconchega-se ainda mais ao travesseiro, indecisa se é isso mesmo o que quer. Essas vozes são incômodas e, na maioria das vezes, é muito mais fácil encerrar esses papos apenas ignorando o apelo.
-Perdoe, torna a insistir a voz , certa de que está a incomodando.
Espreguiça-se languidamente, levanta-se, abre a janela para ver melhor o dia, respira o ar molhado, encanta-se com o violeta das flores da quaresmeira, encaminha-se para o banheiro com a decisão tomada.
Esta manhã escura, chuvosa, fria, tem um mérito: trouxe-a de volta à vida.

Esperou muito para poder planejar a vingança, mas uma vez possível, ela se envergonha do seu plano. A vingança se assemelhava à conquista. Concretizá-la seria preencher de vazio a sua vida. Desistir dela, abria-lhe as portas da sua alma para horizontes desconhecidos. Maria entendia o significado da vingança e a desistência a fazia feliz. Maria não era um monstro!

5 comentários:

  1. É maravilhosa a coerência da Maria. Não esconde a sombra,mas a enfrenta com galhardia! Muito bom, gostei, como sempre. Recado: Animei para o mestrado, vamos?

    Rosana Rodrigues

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  2. Mestrado: Ainda não. Quanto ao conto: Achei que ficou um pouco pesado, talvez pela imagem de Goya... mas você foi bem na interpretação da sombra. Que existe, existe! Beijos!

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  3. Acho que agora ficou melhor, juntei os dois momentos.

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  4. Puxa, o blog está forte, intenso, estupendo, como Maria! Beijos!!!!

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  5. saudades de você Atena! Visito sempre seu Templo. Maria está tentando voltar à vida, depois de se emprestar para o mundo...

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