Imagens:
Julien, de Hiroshi Furuyoshi
Le Défi, de Marina Dieul
Texto de Paulo Mendes Campos
Uma vez eu estava em Londres numa sala comum da classe média inglesa: a lareira acesa, todo mundo com sua taça de chá, a família imersa naquela naturalidade (chega a parecer representação) com que os ingleses aceitam a vida. Os ingleses, diz o poeta Pessoa, nasceram para existir!
A certa altura, um garoto de uns dez anos começou a contar uma história de rua, animou-se e começou a gesticular. Só comecei a perceber o que se passava quando notei que aquele doce sorriso mecânico, estampado em cada rosto de todas as pessoas da família, sumiu de repente, como se uma queda de voltagem interior houvesse afetado o sorriso coletivo. Olhos de avó, mãe, tias e tios concentraram-se em silêncio sobre o menino que continuava a narrativa com uma inocência maravilhosa. Diante disso, uma das senhoras falou para ele com uma voz sem inflexão: “Desde quando a gente precisa usar as mãos para conversar?”
Vi deliciado o garoto recolher as mãos e se esforçar para transmitir o seu conto com o auxílio exclusivo das palavras. O sorriso doce de todos iluminou de novo a sala: a educação britânica estava salva.
Mas minha atitude diante do “problema da educação” continuava se afogando. Realmente, pensei, não precisamos das mãos para conversar; ora, se a gente obriga uma criança a abrir mão da mímica, a exprimir-se exclusivamente por palavras, essa criança aperfeiçoará sua capacidade verbal. Perfeito. Uma meta educacional foi atingida. Os ingleses sabem.
Mas mudemos o ambiente geográfico do problema. Imaginemos um garoto italiano de dez anos que fosse coartado pela família em seus gestos meridionais. Seria uma crueldade, uma afetação pedagógica, uma amputação social.
Daí, cheguei pela milésima vez à mesma conclusão que me espera no fim das reflexões desse gênero: os ingleses educam seus filhos para que eles venham a ser ingleses, os italianos, para que sejam italianos.
Em outras palavras: não existe Educação, mas uma atmosfera educacional. Melhor seguir instintivamente as sugestões desse ambiente, certas ou erradas, do que procurar estabelecer normas de educação intocáveis, universais. O erro grosseiro é deixar menino inglês comportar-se como italiano ou forçar o italianinho a comportar-se como inglês.
A reflexão pode parecer (e deve ser) irrelevante, mas é base de todas as idéias que me faltam sobre educação. Nunca cheguei a pensar nada sobre a educação. Nunca concordei extensivamente com nenhum autor ou nenhum amigo a respeito de educação. Nunca tive opiniões sobre educação, principalmente de filhos meus.
Minha perplexidade começa exatamente no que deve ser o ponto de partida da certeza dos outros: só podemos educar para alguma coisa; dado um objetivo, procuramos fornecer à criança os meios de atingir esse objetivo.
Por exemplo: decido que meu filho deve estudar piano; contrato-lhe um certo número de aulas por semana, obrigo-lhe a um certo tempo de exercícios diários, mas o caso é que eu não posso decidir que meu filho deve estudar piano. Por que estudar piano? De duas, uma: se sou eu que gostaria que ele estudasse piano, o problema é meu e não dele, nada tenho a ver com educação; mas se eu acho que seria bom que ele estudasse piano, tenho de responder honestamente às seguintes questões: Por quê? Para quê? Para ser um concertista? Um concertista mais ou menos ou o melhor do mundo? Para facilitar sua vida social?
Caso eu não responda a essas perguntas com convicção, estou blefando; e mesmo que as responda, não poderei nunca ter a certeza de que meu filho gostará de ser o melhor concertista do mundo ou de tocar um pianinho para divertir os presentes. Volto assim à minha patetice inicial: quando decido que meu filho deve estudar piano (ou inglês, sociologia, matemática) não tenho a menor certeza de que estou a educá-lo; apenas transfiro para ele ansiedades minhas ou idéias convencionais de minha classe.
Ora, dirão que educar não é impor obrigações mas captar as aspirações da criança. Se isso fosse uma verdade absoluta, os colégios andariam vazios e as praias cheias de crianças da manhã à noite. Admito, no entanto, que uma criança chegue para os pais e peça para estudar piano com a maior seriedade; neste caso, é ela mesma que se educa, que escolhe, certa ou errada, um caminho.
Minha perplexidade portanto é a seguinte: que só podemos educar uma criança para que ela atinja um objetivo é fora de dúvida; a dúvida é esta: desconheço os objetivos que devam ser atingidos. Sei que se vive e morre, mas desconheço os objetivos da vida; desconhecendo os objetivos da vida, desconheço os objetivos da educação. Para se viver e morrer, a educação é desnecessária.
Para quem acredita em Deus, não há problema; para quem acredita em dinheiro, não há problema. Mas eu não acredito nem em Deus nem em dinheiro. Logo, não posso educar meu filho para a eternidade ou para a segurança material. Se acreditasse que a finalidade da vida fosse o prazer, ou a arte, ou o poder, ou a obediência, ou o sacrifício, poderia educar meu filho. Faltando-me essas convicções, me perco.
Seria fácil dizer, com uma irresponsabilidade total, que o fim da educação é a sabedoria, a sagesse. Mas, que é a sabedoria? Só os sábios sabem, e os que passam por sábios, os que se recolhem desde o início da civilização às solidões escarpadas, dizem justamente que a sabedoria é aquilo que não se pode transmitir.
Julian Huxley, um racionalista de boa vontade, conta que presenciou uma prática impressionante numa tribo primitiva: as mães esfregavam as criancinhas nas pessoas de fora da família, a fim de que os recém-nascidos se acostumassem a aceitar o próximo. O cientista lamentava que essa tentativa de criar praticamente o amor ao semelhante fosse um exercício exclusivo daqueles selvagens. O lamento implica uma nostalgia da sociedade utópica. Não seria muito difícil fazer um santo de laboratório; mas eu não iria condicionar meu filho para o amor e a bondade e depois soltá-lo numa selva de asfalto. Na frase de Machado de Assis, o único consolo de levar uma cruz ao Calvário é ser crucificado nela – mas seríamos monstruosos se fôssemos educar para a cruz.
A criança de hoje viverá no mundo violento de amanhã, de ontem, de sempre. Para mim, o melhor é ainda não educá-la, isto é, deixar que a sociedade a amolgue com seus vícios, seu furor, seu egoísmo. Ela, a criança, responderá ao desafio. Se somos mentira, hipocrisia, preconceito, amor, medo, fraternidade, coragem e covardia, melhor deixar que a criança se cozinhe e tempere nesse caldeirão absurdo. É por medo que educamos, não por amor; é por convenção que educamos, não é por entendimento.
Só espero que também a meus filhos ocorra a mesma certeza que me mantém vivo: não existe nada, a não ser que a justiça e o amor sejam alguma coisa.
"O que realmente importa em qualquer biografia é o que a pessoa pensa e sente, e não aquilo que fez." (Glenn Gould)