sexta-feira, 4 de março de 2011

Tudo em mim dói

Imagens: Goodward

Como previsto, Maria se encontra com a dor, mas o amor não se altera com o passar das horas ou das semanas, nem se deixa estremecer diante das tempestades, ou se curva diante das forças contrárias. A impressão que Maria tem é que tanto faz se começou ontem ou há mil anos. Nem ela, nem João, são servos do tempo, embora vítimas. Hoje eles sabem muito mais um do outro, estão juntos, por isso é difícil dizer adeus e perder tudo que viveram. Maria e eu marcamos então um encontro para, mais uma vez, buscar explicações, porque é cansativo viver sem vírgulas. Maria respira a existência de João 24 horas por dia e só coloca mesmo pausas teatrais para que ele não enjoe dela. O desejo era bem outro. Queria esquecer o relógio.
Encontro-a com desarranjo intestinal, olheiras bem marcadas, inapetente e com fortes dores no peito. A tristeza é visível em seu olhar e, justamente nesse dia, ela terá que gravar um programa para a televisão. Não quer ser delatada. Chora escondida, e para não ceder ao desejo, desliga até o celular. Voltará a ligá-lo no final da tarde. Ainda não está pronta para a separação. Seria tão mais fácil se estivesse desiludida, decepcionada com João, mas não é nada disso. Mais do que nunca ela admira João, e amor para Maria começa com a admiração, que desperta o respeito e desencadeia uma série de sentimentos bons e verdadeiros. João é paradoxo. É, ao mesmo tempo, simples e sofisticado, velho e menino, rei e escravo, alegre e triste (aqueles olhos não a enganavam). João é como um pássaro cativo, seu gorjeio preenche o coração de Maria. João também é de barro, está sem tempo reformando a casa da esperança. João é como o santo, acende a fogueira do seu coração. Maria ama João. Sempre o amou. Mesmo sem toques, sem proximidade física, sem poder, sequer, validar se a sua imaginação é semelhante à realidade. Maria perde o brilho do ouro. Sente a dor íntima e inconfessável de ter sido enganada pelos próprios critérios. Está revoltada com a mediocridade da sua vida e se promete mudanças.
 - É verdade, Maria, mas antes é necessário conter seu espírito impulsivo, manter a calma, cultivar a paciência. Não se esqueça que está no sétimo período! Destruir para construir depois. Caos total! Procure manter a serenidade, sem querer precipitar o que pensa que será o fim.
 - Eu não imaginava que resgatar João, na memória e na vida, significaria um exercício de transcendência do amor. Foram novas emoções. Agora preciso esquecer. Foi um sopro de vida. Eu queria me sentir bonita de novo. Iniciei uma dieta, até batom tenho usado, reclama, sentindo pena de si mesma.
 - Querida, você despertou a mulher que insistiu em enterrar, na esperança de não sofrer mais. Viver é isso mesmo: expor-se às emoções, aos sentimentos, aos desejos. A Maria que conheço encontrou um porto seguro para desembarcar com sua bagagem poética. Isso é muito bom, não deixe acabar. Faça de João apenas o estopim para sua explosão criativa.
 - Ah se fosse assim tão fácil... Enquanto só amei João, ele era realmente minha fonte de inspiração. Fui longe, eu o toquei, fui tocada. O cheiro de sua pele ainda está entranhado em mim. Eu o desejo. Estou viva, apaixonada, com sede de afagos e beijos. Contida, é verdade, mas dentro sou barril de pólvora.
 Maria percebe que, desde que optou por colocar João como homem em sua vida, seus hormônios parecem descontrolados. Ela é mais olhada. Às vezes ouve algum comentário sobre o brilho dos seus olhos, ou sobre a sensualidade da sua cruzada de pernas. Observações sempre muito discretas, ainda que galanteadoras, porque há muito Maria criou muralhas que a separavam dos desejos comuns. Tudo isso coloca em erupção o vulcão que tem dentro.
A noite foi longa e fria. Maria não conseguiu dormir. Rolava na cama à procura de João. As imagens do sonho se misturavam aos ecos da realidade. Maria acorda cansada. Olha com desânimo o chuveiro, ainda sente frio. Com a alma em frangalhos espera notícias de João. Ele resolveu quebrar o silêncio. Maria bebe palavra por palavra, enquanto grossas lágrimas lhe escorrem pelo rosto sem maquiagem alguma. A cada frase, mais dor! Uma dor que se mistura à ira, ao amor irrealizado, à vergonha de ainda continuar querendo, ao desejo de se entregar a um amor proibido. Terá que conviver com suas sombras. Nem Deus poderá livrá-la de seus pecados, mas como confessá-los? Há um vazio enorme em tudo que Maria olha. Ela fecha os olhos num gesto de fuga de tudo que a cerca. Sozinha, na escuridão que sua alma se encontra, ela se deixa levar pelos caminhos do inconsciente. São vários os porões da sua alma.
 - Ah! João, quanta falta você me faz!, suspira conformada.
João deve estar agora buscando sua paz em meio ao verde, aos sons da água viva dos rios e cachoeiras. Maria experimenta, conscientemente, sentimentos pouco nobres. Sabe agora o que é a inveja. Sente profunda inveja da mulher que tem a propriedade de João. Da inveja ao ciúme, o movimento é menor que o de um peão no jogo de xadrez. Pássaros, anjos, músicas das esferas, nada disso tem importância. Maria vive um inferno. Não tem a alma de João e nem seu corpo. Terá que se contentar com migalhas de um amor que nunca será seu. Maria está mais só do que nunca.

6 comentários:

  1. Queria não saber... Mas sei exato o tamanho desta dor. Maria não está só, compartilho deste momento.

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  2. Rô, você é uma grande companheira de Maria... e minha também. Obrigada por sua companhia ontem no chorinho. "É cantando que carrego a minha dor..."

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  3. Não se contente com migalhas...

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  4. Ah meu caro anônimo...é a vida que decide com o que podemos nos contentar... às vezes as migalhas são privilégios preciosos. Maria tem aprendido, não sem dor, a não remar contra a correnteza!

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  5. Hoje em mim tudo dói também. As lágrimas saltam dos olhos, elas dominam minha força em querer contê-las. Um nó me aperta a garganta! O não querer chorar é como quisesse por um fim no sofrimento. Me sinto impotente, só, perdido... E apesar dos muitos golpes levados da paixão e em nome de um amor renegado, seria o alívio poder repousar nos braços amados. Ahh, se meu amor voltasse agora... Eu seguramente correria ao teu encontro!

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  6. Caro (a) Anônimo (a),

    Ainda que sejamos sensíveis, que estejamos sempre em busca de uma amor que navegue em águas tranquilas, nunca podemos perder a nossa dignidade. Chore! Esvazie-se, mas não implore. Amor que implora, não é amor, é doença do coração. E se o seu é verdadeiro, deixe o outro ir... Deixe-o livre. Desculpe-me, alguém me disse que minhas histórias são de auto-ajuda - talvez para diminuir seu valor literário -, mas isso me deixa feliz. Oxalá encontre aqui palavras que orientem. Maria é uma personagem que se dedica a reproduzir os sentimentos femininos, mas também sabe falar aos homens.

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