Imagem: autor desconhecido
-Repete se for macho.
-Bêbado!! E ainda grita o nome bem alto para todo mundo ouvir!
-Seu burro, covarde, cretino, imbecil!, grita João jogando a mochila em Carlinhos. Poderia ser uma briga comum entre crianças, mas as ofensas eram típicas de gente grande. De longe, Maria observa as crianças em silêncio. Pensa em intervir. Aliás, no seu íntimo, pensa que só vai interferir na briga se João estiver apanhando. Enquanto ele estiver batendo, Maria se sente, de alguma forma, vingada. Nada a ver com aquela história, mas a cena a remete à única vez em que rolara na rua batendo (e apanhando) em uma colega de escola. A cena, hoje, permite análise diferente da que fez quando menina. A bebida fez parte de sua infância, de sua adolescência, de sua vida madura, de sua primeira gravidez, de seu primeiro divórcio. Era um fardo pesado demais para ser carregado, até entender que o problema estava única e exclusivamente nela. Ninguém precisava sofrer tanto por tão pouco. Ela sofria. Sua autoestima ia ao chão, como se fosse ela a se arrastar com a bebida. Desvencilhar-se desse sentimento de menos-valia não foi fácil. Entender-se como pessoa independente dessas circunstâncias foi verdadeira guerra interior. Mas conseguiu.
A liberdade significava para ela, nesse instante, o resgate de pessoas muito queridas, muito amadas, que acima de tudo precisavam ser compreendidas e respeitadas. Foi preciso sofrer para conseguir sair de seu mundinho e perceber que existiam outras pessoas no universo, com sentimentos tão contraditórios como os dela. Que travavam lutas diárias, assim como ela, para conseguir percorrer seus próprios labirintos. Umas precisavam de muletas como a bebida, outras usavam drogas, outras usavam desculpas socialmente mais aceitas. No fundo era tudo a mesma coisa.
O ser humano cria mecanismos de defesa, procura justificativas para suas atitudes e, na maioria das vezes, é complacente consigo mesmo. O autoenfrentamento é sinal de coragem, mas os mais conflituados são aqueles que mais se buscam. Maria havia aprendido a lidar com gente assim em grupos de apoio a pessoas com depressão. Aprendeu a amar o ser humano, embora reconhecesse em muitos a maldade programada e consciente. Tinha pena desses.
Maria não sabe exatamente quanto tempo durou suas reflexões. Os gritos das crianças a tiram do alheamento e a colocam de volta à realidade. Os dois meninos estão rolando no chão. Não dá para saber quem está ganhando a briga. Naquele momento, Maria entende que são apenas duas crianças aprendendo a viver como os adultos. O que ela está fazendo ali que nada faz para mostrar que o mundo não é apenas essa m... que aparenta ser? Percebe que de novo andou dando voltas em torno de seu próprio umbigo. Sente as lágrimas correr em seu rosto e vai ao encontro dos garotos. Separa os dois, espanta a platéia, leva-os para lavar as mãos, secar as lágrimas, fazer as pazes e os convida para, juntos, tomar sorvete.
"Aprendera a amar o ser humano, embora reconhecesse em muitos a maldade programada e consciente."
ResponderExcluirNão sei se pelo momento que vivo, mas ultimamente tenho notado demais esta maldade consciente. E dói mais porque são pessoas queridas.
Maravilha a reflexão de Maria, conclui que estou em uma intensa busca... Cavando o coração.
A arte de viver meu caro Anônimo pode estar na necessidade de cavarmos o coração e a plantarmos serenidade. quem sabe assim poderemos renascer com o coração sábio. Um grande abraço!
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