terça-feira, 5 de maio de 2015

Um brinde aos olhos do viajante

Jacob van Ruisdael (1628-1692) Paisagem com Moinhos de Vento Perto de Haarlem 

A manhã foi tomada na viagem de trem de Bruxelas a Amsterdã. Viajo calada (isso não é normal, rsrsrs), olhos inquietos e filmo tudo que vejo. A paisagem rural é, em tudo, diferente da nossa. Boa parte da vegetação ainda exibe a aridez provocada pelo inverno. Caules que se levantam formando imagens que se alteram segundo o estado de espírito. Ora belas, ora tristes, ora medonhas. Enquanto isso a imaginação cria histórias sobre elas que serão esquecidas na próxima curva do trem. Muito vai se perder e, de fato, se perdeu ainda nos trilhos. Mas também não dava para ficar anotando tudo que passava pela cabeça, então a decisão foi deixar a alma filmar, sentir, fotografar, viver. Apenas o que ficasse retido na memória faria parte do arquivo.
Os lugarejos por onde passávamos evocavam outras histórias, lembranças, cenas de filmes, telas, romances. Tudo parecia, paradoxalmente, familiar e diferente, afinal passáramos parte de nossas vidas tendo a fantasia como ferramenta de trabalho e, naquele instante, o que me vem à mente é o mito quixotesco que permeou minha literatura. Lutei sim com enormes e cruéis gigantes que, ao final, se transformaram em moinhos de vento. Claro! Ao entrar em terras holandesas não esperava encontrar mulheres de roupas típicas usando tamancos – isso seria muito complicado enxergar da janela do trem – mas, os moinhos de vento, ah! Isso sim, sem dúvida veria muitos naquele cenário rural.  Apostei minhas fichas no impossível. Vi sim moinhos se transformarem em gigantes. Imensos moinhos modernos produtores de energia eólica. Mais uma vez a luta contra moinhos de vento se transformou no paradigma da inutilidade e é Maria que vem – de novo – a meu socorro. Ela entendia o significado profundo da literatura. Ficção e realidade se entrelaçavam e uma alicerçava a outra, pavimentavam as pontes, de forma que a inutilidade da imaginação não importava. Naquele momento Maria não apenas realizava, por meu intermédio, uma de suas inúmeras viagens imaginárias e fantásticas, também pincelava de realidade o que um dia não passou de alucinação. O tempo não pára (já disse que não consigo escrever sem assento?) e tem um momento que somos obrigados a assumir nossa fantasia.

Então volto a pensar no tempo, enquanto passo o tempo observando novas paisagens. Maria muda comigo, se transforma a cada experiência e ainda não se pode saber que rumo tomaremos. Estamos envelhecendo, o que vivenciamos tem agora outro sentido e não sei se conseguirei traduzir tudo em palavras. A mesma inutilidade da luta contra moinhos de vento alimenta as palavras. Nunca é fácil sentar e escrever sem qualquer objetivo. Trazer os pensamentos do nada para o vazio da palavra e sentir a pressão do tempo. Entre o ideal e a realidade fica o sentimento de vazio. O que queremos, Maria e eu, é saber se você nos acompanha nesta viagem. Se aceita a vir conosco e a não falar, a não escrever, a não sentir, a não ter o que trocar a não ser o silêncio e a beleza dessa paisagem fria e bucólica.

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