terça-feira, 2 de novembro de 2010

Fim de linha



Uma pequena pá de jardineiro, um vaso de flores amarelas, um regador e uma Bíblia. Com essa estranha combinação de ferramentas e objetos, Maria entra no carro, totalmente vestida de negro, com o nariz inchado e vermelho de tanto chorar. Ela está de luto e não faz questão de esconder isso de ninguém. Sua mãe a chama e pede para ir com ela. Ela diz que não é necessário, apenas vai plantar aquelas flores no cemitério.

Foi para o Jardim das Oliveiras, um cemitério moderno, sem cruzes, mausoléus ou esculturas de anjos e santos. Só placas de mármore, grama e muitas árvores. Flores só em vaso. Ironicamente, ela gostava daquele cemitério e não seria enterrada nele. Havia comprado a parte que lhe cabia nesse latifúndio em outro lugar.

Enquanto se encaminha em busca de um recanto que lhe agradasse mais, percebe que algumas lápides têm fotografias e, sem pressa, se detém em algumas tentando imaginar, pelas expressões captadas como teria sido a vida daquele rosto perdido entre tantos outros, anônimos para ela, mas certamente valiosos para alguém que ainda ficou por aqui. Os rostos jovens lhe impressionavam mais e Maria percebe que todo aquele ritual que prepara tem mais a ver com um pedido de socorro para a vida, do que um pacto com a morte. Ela não tem medo de morrer, mas já que está viva, precisa descobrir sua forma de ser feliz.

Encontra uma sombra que lhe parece acolhedora, não tem ninguém por perto, está muito longe da entrada do cemitério e aquela solidão lhe parece amiga. A quietude do local lhe proporciona grandes reflexões. É ali que ela consegue a paz que precisa para colocar em ordem os sentimentos desencontrados que a perseguem nos últimos dias. É ali que ela percebe a inutilidade da vaidade, da pressa, da ganância, da paixão desenfreada. Podia ouvir o canto os pássaros, o farfalhar das árvores frondosas e até ficar encabulada ao se sentir observada por uma pequena coruja em plena luz do dia. Não sabia porque, mas achava que a coruja deveria estar dormindo e só sair para assombrar à noite. Os olhos dela eram profundos e pareciam pesquisar a sua alma e o barulho que ela emitia não era um canto, mas ecoava como uma risada ameaçadora.

Maria se ajoelha e reza. Logo ela que não crê em Deus religioso, procura encontrar alento na Fé. Abre a Bíblia ao acaso e dá de cara com o Salmo 91, "Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas e debaixo das sua asas estará seguro: a sua verdade é escudo e broquel. Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia. Nem peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio dia".

Sentada no chão, entoando entre soluços alguns sons vocálicos, Maria começa a cavar um buraco na terra. Sua alma está ferida, seu coração, magoado e a tristeza toma conta de seus pensamentos. Precisa chorar a perda, a mágoa, o desengano. Precisa chorar para poder esquecer. E será naquele buraco, onde vai enterrar o vaso de flores, que ela também vai enterrar parte das suas lembranças e toda a sua dor. O sofrimento de se saber viva e lúcida, quando o que queria era o privilégio de poder enlouquecer. Precisa sair dali aprendendo a contar seus dias de maneira a alcançar um coração sábio.
Na realidade, Maria foi ao cemitério enterrar um grande amor.

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