segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Apenas uma redação

Este era o Grupo Escolar Senador Azeredo, hoje transformado em Casa do Artesão. Foto enviada pela Dra. Rosarinha Bastos (Didi), minha companheira inseparável.


Hoje é dia da árvore e por isso Deus nos presenteou com uma bela chuva. No caminho da escola, conversei com cada árvore que encontrei. Elas estavam felizes e irradiavam brilho nas gotinhas de água que guardaram em suas folhas.
Pronto. E agora? Travou.
Maria não conseguia mais escrever. A viagem no mundo das árvores parecia sem volta. Ela queria traduzir cada diálogo que teve, mas a imaginação corria à frente da disciplina e ela se deixava levar. A campainha toca avisando que acabara a aula de redação. Sobressaltada, retorna à realidade da sala de aula. O que faz agora? Chora e diz que está com dor de cabeça e por isso não terminou a redação? Não daria certo. A aula foi depois do recreio e ela, viva, esperta, havia aprontado todas. Ninguém acreditaria. Maria pensa rapidamente em outra desculpa, mas não consegue achar. Decide entregar a tarefa incompleta mesmo, afinal em poucas linhas ela já havia falado tudo o que queria e o seu diálogo com as árvores não tinha nada a ver com o dia comemorativo delas. Ela fazia isso diariamente e há muito tempo as árvores reclamavam da poeira e do tempo seco. Ninguém ouvia as reclamações delas, porque ouviriam seu cântico de agradecimento?
Em casa a realidade era diferente. Ela tinha apenas oito anos, mas alguém havia dito que era inteligente e por isso a cobrança era sempre grande. Todos esperavam mais do que ela podia dar e seu esforço nunca era suficiente para agradar. Você pode ser muito melhor, era a frase que sempre escutava. Nenhuma palavra de incentivo. Nada de parabéns. Maria tinha a obrigação de ser brilhante. Era isso o que esperavam dela.
Nesse dia ela foi para casa pensativa, mas ninguém perceberia. Logo seu irmão estaria pentelhando a sua paciência e ela daria seus gritos estridentes e ficaria tudo por isso mesmo. Difícil mesmo seria a hora de mostrar a redação incompleta em casa, com a observação, certamente, destruidora da professora. Maria resolve esquecer. Até o dia seguinte ela encontraria uma boa desculpa. Se fosse mesmo inteligente, saberia encontrar uma saída honrosa.
O som dos passos em sapato alto anunciava que a professora já estava chegando à sala de aula. O barulho era mais alto que nos dias normais. A escola tinha um porão embaixo e os corredores eram de madeira, somente nas salas a construção era de alvenaria. A julgar pelo barulho ali entraria um furacão vestido de mulher. Chega o momento tão temido e esperado. A professora entrega todas as redações, menos a de Maria que sofre calada vendo o papel na mão dela.
- Esta é a redação de uma colega de vocês. Eu vou ler.
Lágrimas começam a correr pelos olhos de Maria. Ela será humilhada na frente de todos os colegas.
Ao terminar a rápida leitura a professora completou:
- Foi uma pena que Maria não nos brindasse com o diálogo que teve com as árvores. A redação não está completa, mas Maria não me engana. Estamos diante de uma futura escritora. Eu lhe dei a nota máxima, mas ela vai levar a redação para casa e concluir.
Professora Paciana (era esse o seu nome) era uma mulher de menos de um metro e meio, usava sempre preto, guardando o luto do marido. Era uma pessoa suave. Não colocava medo nas pessoas. O medo estava na cabeça de Maria. A professora morreu no final daquele ano. Não viveu para ver as primeiras reportagens de Maria e nem ficou sabendo que foi uma das incentivadoras na carreira que escolheu. Ser escritora foi um sonho que Maria nunca chegou a ter.

10 comentários:

  1. LINDO, ANO QUE VEM VOU ME CASAR, QUERO SER PESENTEADO COM UM TEXTO SEU.

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  2. Hoje é mesmo o dia da arvore?...rsrs
    Que surpresa boa ler um texto seu ao cair da tarde depois de uma chuva, li em voz alta para os presentes na sala e assim como Paciana, ficamos na vontade da continuação da história com o dialogo de Maria.
    Não vou me casar mas se quiser presentear-me com um texto será uma grande honra!
    beijos Marley.

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  3. Maria!
    Parabéns!... Jura mesmo que não quer ser escritora? Escreva mais aí, você já descobriu que escrever literatura é ainda mais gostoso (prazeroso) do que escrever como jornalista!

    Beijo meu.

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  4. Roberto, se não vai se casar, pára de enrolar a menina, rsrsrs. Obrigada pela visita ao blog pelo carinho das suas palavras. Agora aguardo vc para concluirmos novos projetos, já que melou a eleição. Beijos! P.S. O dia da árvore é 21 de setembro.

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  5. Luiz vc sabe o quanto sua opinião é importante para mim. Vou aqui registrando, mas é mesmo sem qualquer pretensão. As vezes parece que serei sufocada pelas palavras e a alternativa é colocá-las para fora. Mil beijos!

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  6. Minha amada amiga (de infância)... Cheguei a ver o Grupo Escolar Senador Azeredo (ah!Escola pública! Porque não retorna para as nossas crianças de hoje?). Saudades de tudo que vivemos àquela época, nós sim, tivemos infância, sonhamos... E a professora Paciana? Auribelina e tantas outras... Sem esquecer de D. Duduta (minha amada mãe) que trabalhava no colégio...E, como esquecer que dividíamos a mesma "carteira" escolar? Te amo muito minha querida, você é a única que não passou pela minha vida. Mesmo distante, sempre esteve na minha memória...
    Lindo dia! intemasvê!!

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    1. Acho que escrevi a resposta no seu blog... e hoje, voltando aqui percebo que ficou sem resposta. E de que adianta escrever agora se você não está mais entre nós? Aproprio-me de seu texto: você não passou pela minha vida. Mesmo distante, continua em minha memória...amor eterno!

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  7. Marley, já tive uma professora Panciana, chamada Margarida. Fantasiei tanto a minha redação feita em casa que ela pensou que algum adulto a fizera por mim. Quase fui punido. Não sei por que, mas curti uma satisfação. Na época, dez anos de idade, ninguém lia gibis e livros de aventuras mais do que eu.

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  8. pois então meu amigo anônimo... a minha professora foi minha grande incentivadora. Por isso eu faço, em meu livro três homenagens póstumas aos que viram em mim um pouco de literalidade, Professora Paciana Torres, que me inspirou este conto em Histórias do Cotidiano, Anatole Ramos e Bernardo Élis. Cada um tem sua história comigo... Obrigada pela visita.

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