segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O homenzinho azul



Era uma vez um homenzinho azul que vivia na escuridão. Saía de casa toda noite para buscar o diamante do sol e voltava ao raiar do dia, mergulhado em sombras. Só vislumbrava a luz em noites enluaradas. E homenzinho azul que vivia na escuridão passou a vida dormindo de dia sem entender o tempo e morreu distante da luz, distante do sol.


Moral da história:
Quem procura a luz fora de si não se transforma em estrela.

A menina cor-de-rosa





Era uma vez uma menininha cor–de-rosa que vivia na concha furta-cor de um caracol e ousou empreender viagem para além dos seus limites. Conheceu serpentes corais, flores amarelas, insetos vermelhos, animais verdes, homenzinhos azuis. Cada um com quem se encontrava profundamente lhe transformava, modificava sua cor, fazia-a viver milhões de emoções em um só dia. Aprendeu a pensar com o coração, agir com a emoção e vencer com o amor. Aprendeu a hospedar pessoas em seu próprio ventre e a ter paciência para esperar nascer. Aprendeu a dar asas, ensinar a voar e deixar partir. Transformou em luz e sorriso as dores e incompreensões que carregou na alma e aprendeu a ter sempre à disposição um ombro forte a oferecer. E foi assim que a menininha cor-de-rosa se descobriu mulher e foi morar no arco-íris.

Moral da história: Para ser é preciso ousar.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Um encontro com o Tempo

Jovem e Eros (Bouguereau)



A luta tem sido grande para exteriorizar o que se passa em meu interior. Sinto que há algo sufocado, pedindo para tomar forma, para sair e me dar a mão nesta caminhada de autoconhecimento. Há um bloqueio perceptível, mas em meu âmago sei o que gerou toda esta dificuldade. Emprestei minha vida a outras vidas e, perdida de mim, tateio o escuro, o obscuro, o morno. Buscar a Luz exige disciplina e generosidade para sair do pequeno círculo de mim e me integrar a uma energia maior. Começo então pela disciplina de me obrigar a escrever, pelo menos, uma vez por semana. A obrigatoriedade de percorrer os labirintos mentais e emocionais que criamos abre, com certeza, os portais da compreensão, sem que tenha medo de me expor. Este escrever a que me refiro vai além das palavras, das frases bem elaboradas, dos textos brilhantes. Falo de sentimentos, de descoberta do que realmente sou.
Tomada então por estas reflexões, visto-me e saio à procura de um lugar em que esse encontro seja facilitado. Sento-me então na primeira igreja que encontro aberta. Escuto o silêncio. Encontro na solidão amiga a paz que me equilibra nas ações do dia-a-dia. Nem percebo que ao meu lado se senta um rapaz, um jovem de cabelos longos, de barba, de olhar penetrante, que me olha como se visse um fantasma.
- Não estou chorando, porque será que estou chamando a atenção desse rapaz? Porque veio se sentar justamente do meu lado, quando todos os bancos estão vazios? Penso.

- Boa tarde, senhora.

Assusto-me e meu corpo estremece com a vibração daquela voz, mas respira fundo e responde.

- Pois não.

- Entrei aqui porque me sentia em crise existencial. Sentia a dor e o desespero de simplesmente viver. Senti a quietude da senhora e não resisti a vontade de me aproximar. Parecia que eu seria envolvido por essa nuvem de paz que a senhora transmite.

- Meu Deus, estou aqui em busca de mim mesma, do meu Ser. Como posso ter despertado isso em você? Você ainda é tão jovem, é natural que se faça perguntas e é bom que isso comece cedo. O tempo é algo que nos escapa das mãos. O que posso fazer por você?

- Nada. Apenas converse comigo.

- E sobre o que você quer conversar?

- Como foi que a senhora conseguiu viver até aqui? A vida não lhe pesa?

- É uma longa história, meu rapaz. Sempre pensei que o tempo fosse um velho denso, sério, fechado. Vivi. O próprio tempo se mostrou então a mim como jovem, alegre, doce, amável, etéreo, assim como você. A vida tenta complicar, mas o tempo corrige tudo.

- A senhora transmite serenidade. Há uma aura de delicadeza envolvendo as suas palavras. Não sei porque, desde que vi a senhora sentada, senti uma certa identificação. Há uma singular familiaridade no que me diz. A senhora já se sentiu perdida? Como estou eu agora? Há um jeito de sair desta angústia?

- Muitas vezes me senti perdida. Se não ficar atenta, eu me perco de mim todos os dias. Lamentavelmente não existem regras, mas há sim métodos simples que podem disciplinar a nossa mente. Um deles é não ter medo de enfrentar a si próprio, reconhecer seus defeitos, admitir que todos nós temos sombras, mas só podemos combatê-las se as identificarmos. Penetrar nossos labirintos pode ser uma experiência gratificante e pode nos ensinar os primeiros passos em direção à Luz que vem de dentro. Podemos identificar esse ponto brilhante nas sístoles e diástoles do nosso pensamento.

- Realmente, esse caminho não me parece estranho. Enquanto fala é como se eu mesmo me encaminhasse para a luz. Estou como hipnotizado, robotizado, encantado.
É como se estivesse voltando para casa. Sinto-me seguro para esse retorno. Vou de mãos dadas com o Tempo. Dissipou-se em mim as lembranças, as saudades, as amarguras. É tudo novo, embora eu saiba que é apenas o velho que se revestiu de novo. Estou indo. Desculpe-me por incomodá-la com os meus problemas. Saio daqui feliz.

- Que o Deus do seu coração o acompanhe.


Retorno então aos meus pensamentos. Penso no tempo. Alma velha em corpo novo. Sempre esteve ali, nunca chegou, nunca saiu. Enquanto tentava explicar ao rapaz a minha experiência, expliquei a mim mesma e agora estou em paz. Em meu caminho agora, apenas belas flores de serenidade.

- Hoje, encontrei-me com o tempo!

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Envelhecer com dignidade


Envelhecer com dignidade

Agrada-me envelhecer... É como se cada ano
que passasse retirasse um véu dos meus olhos.
Reconhecer a dor, vibrar com a alegria,
sonhar com cada possibilidade,
VIVER a realidade.
Mas, o que mais me encanta é a serenidade.
É ter aprendido a perder ou a ganhar, sem
que isso tenha realmente valor em minha vida,
porque finalmente posso entender
que sempre se ganha.
Perco uma queda
de braço com a existência, mas nunca
perco a lição.
Encanta-me ser chamada de tia pelos amigos
dos meus filhos. Para ser honesta,
há um misto de prazer e
de divertimento quando alguém
desconhecido também me chama de tia,
ainda que a intenção dele
seja a de me xingar...
Só cheguei até aqui porque vivi.
Divirto-me com os donos do mundo, com
a lógica, com a competição dos jogos.
Ao envelhecer sinto que é mais fácil
compreender
os vencedores e os derrotados.
Cada ruga, ou cada fio de cabelo branco
conta uma história.
Todas válidas, reais, verdadeiras.
Gosto das marcas do meu corpo,
São provas de que realmente
EU EXISTO.

sábado, 13 de novembro de 2010

Para renovar o pecado


Há algum tempo venho juntando imagens de Psiquê e do Amor, são telas e esculturas famosas. Em nenhuma vi Psiquê tão entregue ao Amor como nesta Imagem de Bouguereau. É terna, suave, mas traz embutida um erotismo elegante. Adolescentes descobrindo o amor. Brindo o final de semana com Bilac, meu poeta da adolescência. Amem muito! Renovem o pecado... homem maior que Deus!!!

A Alvorada do Amor

Olavo Bilac

Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:
Chega-te a mim! entra no meu amor,
E e à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, uma em uma, as lágrimas do rosto!
Vê tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calafrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...
Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés...

Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da boca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo morrer, que importa? A natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!

Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico na terra, e à luz dos olhos teus,
Terra, melhor que o Céu! homem maior que Deus!

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Só perguntas


Perguntas

Porque é que mesmo reconhecendo a própria culpa, não consegue deixar de se sentir magoada?
Porquê é tão difícil ultrapassar situações que a magoam?
O que tem por trás das suas expectativas em relação às pessoas, que elas nunca preenchem o modelo?
Será que ela escolhe quem não está preparado para preencher essa expectativa, propositalmente?
O que tem por trás disto tudo, que a faz tão infeliz?
Porquê ela tem que esperar de outros?
Porquê os que ama são os que mais conseguem feri-la?
Será que é ela que não consegue amar as pessoas como elas são?

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Reflexões sobre mim


Maria Madalena, desconheço o autor.


Hoje, lendo sobre o Ser Cósmico, vieram-me reflexões, não exatamente sobre o Ser, mas sobre o EU. Quem sou Eu, ou o que sou Eu. Tenho perguntas, mas não respostas. Há muito sei que não sou meu corpo. Seria Eu um Ser Humano? Isso me define? Coloca-me talvez em um grupo definido, vez que essa pode ser uma resposta para qualquer ser humano. O que me torna única? Que me faz Eu?
Penso... isso! Eu sou meu pensamento. Mas se respondo que sou meu pensamento, concluo que o pensamento ainda não sou Eu, tanto que digo meu pensamento, o pensamento exige um Eu para poder existir. É algo que se produz em mim.
Sinto! Eu digo, eu sinto! Serei então o meu sentimento? Também o sentimento precisa do Eu. A emoção é algo que acontece comigo ou em mim. Mas não sou Eu. Então sei que não sou meu pensamento e nem meu sentimento.
Percebo então que enveredo por questões profundas demais que não tenho bagagem suficiente para entender. Percebo. Serei Eu a minha percepção? Ainda não é uma resposta convincente. A percepção é algo que resulta da interação com aquilo que percebo.
Se não sou nem corpo, nem pensamento, nem sentimento, nem percepção, quem sou Eu afinal? Se não posso saber o que sou, não posso conhecer o que sou, só posso ser o que sou e concluir que essa é uma natureza que me transcende. Que faço hoje com meu existencialismo ateu?
Enquanto adepta de um existencialismo Sartreano, durante muitos anos, fiz questão de me sentir responsável por minhas escolhas. Nunca tive a quem culpar por nada do que me acontecia, fosse uma vitória ou um fracasso. Sempre me percebi na origem de tudo. Mas quem é o Eu que me percebia? Ou, o que é o Eu que me percebia? Existir é sentir, necessariamente, a angústia e o desespero. Existir não é ser, mas que sinto, neste momento angústia e desespero por não encontrar respostas, ah! isto eu sinto. E o que existe é finito, concreto, é algo... como o sentimento, como o pensamento, como o corpo, como a percepção. Se transcende eu fico travada. Parada no meio do caminho. Tenho medo do que há de vir, há de ser.
Parece que o ser humano vive melhor sem Deus. O Deus antropomórfico não me satisfaz, as religiões se apoderam de partes dele para manipular, aprisionar. Presa a uma essência volto a questionamentos que povoaram minha cabeça há mais de 20 anos. Em algum lugar deve estar o ponto. No centro do ponto.

domingo, 7 de novembro de 2010

Somente Hoje




Somente hoje

Hoje
Que os risos das crianças cessaram
Que o festivo badalar dos sinos foram esquecidos
Que mãos ansiosas buscaram o nada

Hoje
Que ando sem caminhar
Que turbilhão de ontens se misturam
Com indecisos amanhãs
Que vozes soam sem nada dizer

O hoje sem expressão
Bocas caladas e medrosas
Heróis sem medalhas
Olhares ardentes mortos no silêncio

Hoje
Retiro meus olhos
Dos sinaleiros da vida
Dos famintos deitados na avenida
E penso na flores...
Vejo então uma pétala caída
O sonho, a pétala
Eu, a Vida

Sombras que me seguem



Esta imagem é de Van Gogh.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O pecado e doce prazer da gula



Imagem de Botero

Santo Deus! Não me deixe cair em tentação. Dietas são sempre complicadas. Traz à tona a Síndrome da Mulher Mal Amada, a saudade de um tempo que só se conhece por meio das obras de arte, quando as belezas retratadas eram todas mulheres cheinhas, de formas arredondadas e de carinhas satisfeitas. Comer, nos dias de hoje, realmente é um ato de coragem. Regra geral, depois dos 40, o maior pecado que assombra a mulher é o da gula. Um absurdo! Gula? Porque será que deram ao ato sexual a característica de "comida"? Que estranha relação é essa que afasta mulheres e homens dos saudáveis prazeres da mesa e da cama? Quando um falta, o outro supre.
Ah! A mulher mal amada não consegue mesmo se esconder sem sofrimento. A Primavera se aproxima e logo depois o Verão.Não terei como me esconder em roupas largas. Certamente não pretendo ser uma modelo esquálida, mas quero usar e abusar da elegância. Em casa, o filho mais velho olha de forma repreensiva quando lanço lânguidos olhares para a sobremesa. A filha caçula, complacente, tenta até agradar.
- Mamãe godinha... mas é tão bonita!
Fico olhando para o pé de jabuticaba. Alguns frutos estão maduros, não engordam, mas ela sonha mesmo é com deliciosas truffas, sorvete com muito chantilly, ou mesmo os deliciosos doces caseiros da minha mãe: banana, goiaba, abóbora com côco. Ambrosia. Porque não? Hum! Que tentação!.
Na sala ao lado ouve sua amiga rosnar:
-Eu quero chocolate! Não agüento esta Síndrome de Abstinência!.
Gargalhada geral.
-Abstinência de quê?
-De marido, de comida, de doce. Sou chocólatra assumida! Desse jeito acabo virando um "coró".
Nessa luta contra o vício não se pode deixar de lado a análise que mais uma vez as mulheres são mais generosas. Seus homens podem engordar, criar barriguinhas e barrigões, perderem todos os cabelos e nem por isso são chamados de feios. A mulher certamente sabe amar melhor e mais intensamente que os homens. E a maioria não tem necessidade de variação. Bela herança deixamos para os nossos filhos. Definitivamente, essa escravidão à estética tem que acabar. Por isso mesmo resisto a todas as tentações, tomo um café com adoçante. A dieta vai continuar. Afinal, tenho pés pequenos, se liberar a boca eles não conseguirão me suportar.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Entre o vazio e o nada



O Pensador, de Rodin

Não é exatamente um paraíso niilista, mas em minha alma hoje o vazio e o nada se encontram. Foi assim, sentindo-me despida de tudo que resolvi sair para encontrar alguns amigos. Há muito tempo estou reclusa, com relacionamentos apenas virtuais e, bem entendido, relacionamentos que não permitem nada que não seja público. É isso mesmo, não sou adepta dos masturbadores virtuais. Aliás, coloquei essa observação em um perfil e ganhei um amigo que já há sete anos bate longos e profundos papos comigo. Conversamos há sete anos e ele nunca mostrou a cara. Isso também cansa!
Voltando então ao meu vazio, enquanto me divertia deixei meu olhar se perder. Um rosto na multidão chama a minha atenção. O olhar insistente me dá abertura para um sorriso e não sei como começamos a conversar. Primeira conversa é um porre! Trocas de biografias. Para quem estava vazia, o saldo da noite foi bastante positivo. Temos um encontro marcado no mesmo horário e local na semana seguinte.
Essa reviravolta me traz as reflexões sobre o meu vazio. Parece-me ser esta uma condição que todos nós, mais dia, menos dia, acabamos enfrentando. Algo que emerge diante de situações peculiares e às vezes estressantes, como aqueles momentos que, imagino, antecede a morte. Diante de tantas perdas, começava a vivenciar algo novo. Voltava a ter curiosidade e simplesmente o nada preenchia meu vazio. Sentia-me novamente acolhida, abraçada, com vontade de percorrer o caminho que sempre me levou à transcendência do cotidiano.
O vazio e o nada se encontram em mim. Não existe relevância na situação, mas as perspectivas são como o beijo na bela adormecida. O cansaço se estampa em meu rosto, em minhas atitudes, na impaciência de acompanhar a rotina dos dias, dos trabalhos, das pessoas. Há que se perguntar a que tipo de sinal o vazio pode nos expor. Cabe unicamente a mim questionar se o despertar pode evoluir para sofrimentos psíquicos e alertar para uma compreensão , sem distorção, da realidade. Neste momento é importante, quem sabe esse encontro do vazio com o nada possa explicar meus transtornos alimentares, a ansiedade e a angústia.
A arte e a cultura sempre foram, para mim, campos para explorar e expor o vazio de forma simbólica. A dança, a pintura, o cinema, a literatura, o teatro me conduzem do vazio ao nada. O conflito só existe porque nesse caminho eu me perdi de mim. Vivi outras vidas, dei vida ao que morria, emprestei minha alma, afaguei o ego de príncipes que viraram sapos, impotentes, dissimulados, oportunistas. O casulo foi meu abrigo. Agora preciso voltar a pensar em novos vôos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Fim de linha



Uma pequena pá de jardineiro, um vaso de flores amarelas, um regador e uma Bíblia. Com essa estranha combinação de ferramentas e objetos, Maria entra no carro, totalmente vestida de negro, com o nariz inchado e vermelho de tanto chorar. Ela está de luto e não faz questão de esconder isso de ninguém. Sua mãe a chama e pede para ir com ela. Ela diz que não é necessário, apenas vai plantar aquelas flores no cemitério.

Foi para o Jardim das Oliveiras, um cemitério moderno, sem cruzes, mausoléus ou esculturas de anjos e santos. Só placas de mármore, grama e muitas árvores. Flores só em vaso. Ironicamente, ela gostava daquele cemitério e não seria enterrada nele. Havia comprado a parte que lhe cabia nesse latifúndio em outro lugar.

Enquanto se encaminha em busca de um recanto que lhe agradasse mais, percebe que algumas lápides têm fotografias e, sem pressa, se detém em algumas tentando imaginar, pelas expressões captadas como teria sido a vida daquele rosto perdido entre tantos outros, anônimos para ela, mas certamente valiosos para alguém que ainda ficou por aqui. Os rostos jovens lhe impressionavam mais e Maria percebe que todo aquele ritual que prepara tem mais a ver com um pedido de socorro para a vida, do que um pacto com a morte. Ela não tem medo de morrer, mas já que está viva, precisa descobrir sua forma de ser feliz.

Encontra uma sombra que lhe parece acolhedora, não tem ninguém por perto, está muito longe da entrada do cemitério e aquela solidão lhe parece amiga. A quietude do local lhe proporciona grandes reflexões. É ali que ela consegue a paz que precisa para colocar em ordem os sentimentos desencontrados que a perseguem nos últimos dias. É ali que ela percebe a inutilidade da vaidade, da pressa, da ganância, da paixão desenfreada. Podia ouvir o canto os pássaros, o farfalhar das árvores frondosas e até ficar encabulada ao se sentir observada por uma pequena coruja em plena luz do dia. Não sabia porque, mas achava que a coruja deveria estar dormindo e só sair para assombrar à noite. Os olhos dela eram profundos e pareciam pesquisar a sua alma e o barulho que ela emitia não era um canto, mas ecoava como uma risada ameaçadora.

Maria se ajoelha e reza. Logo ela que não crê em Deus religioso, procura encontrar alento na Fé. Abre a Bíblia ao acaso e dá de cara com o Salmo 91, "Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas e debaixo das sua asas estará seguro: a sua verdade é escudo e broquel. Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia. Nem peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio dia".

Sentada no chão, entoando entre soluços alguns sons vocálicos, Maria começa a cavar um buraco na terra. Sua alma está ferida, seu coração, magoado e a tristeza toma conta de seus pensamentos. Precisa chorar a perda, a mágoa, o desengano. Precisa chorar para poder esquecer. E será naquele buraco, onde vai enterrar o vaso de flores, que ela também vai enterrar parte das suas lembranças e toda a sua dor. O sofrimento de se saber viva e lúcida, quando o que queria era o privilégio de poder enlouquecer. Precisa sair dali aprendendo a contar seus dias de maneira a alcançar um coração sábio.
Na realidade, Maria foi ao cemitério enterrar um grande amor.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Apenas uma redação

Este era o Grupo Escolar Senador Azeredo, hoje transformado em Casa do Artesão. Foto enviada pela Dra. Rosarinha Bastos (Didi), minha companheira inseparável.


Hoje é dia da árvore e por isso Deus nos presenteou com uma bela chuva. No caminho da escola, conversei com cada árvore que encontrei. Elas estavam felizes e irradiavam brilho nas gotinhas de água que guardaram em suas folhas.
Pronto. E agora? Travou.
Maria não conseguia mais escrever. A viagem no mundo das árvores parecia sem volta. Ela queria traduzir cada diálogo que teve, mas a imaginação corria à frente da disciplina e ela se deixava levar. A campainha toca avisando que acabara a aula de redação. Sobressaltada, retorna à realidade da sala de aula. O que faz agora? Chora e diz que está com dor de cabeça e por isso não terminou a redação? Não daria certo. A aula foi depois do recreio e ela, viva, esperta, havia aprontado todas. Ninguém acreditaria. Maria pensa rapidamente em outra desculpa, mas não consegue achar. Decide entregar a tarefa incompleta mesmo, afinal em poucas linhas ela já havia falado tudo o que queria e o seu diálogo com as árvores não tinha nada a ver com o dia comemorativo delas. Ela fazia isso diariamente e há muito tempo as árvores reclamavam da poeira e do tempo seco. Ninguém ouvia as reclamações delas, porque ouviriam seu cântico de agradecimento?
Em casa a realidade era diferente. Ela tinha apenas oito anos, mas alguém havia dito que era inteligente e por isso a cobrança era sempre grande. Todos esperavam mais do que ela podia dar e seu esforço nunca era suficiente para agradar. Você pode ser muito melhor, era a frase que sempre escutava. Nenhuma palavra de incentivo. Nada de parabéns. Maria tinha a obrigação de ser brilhante. Era isso o que esperavam dela.
Nesse dia ela foi para casa pensativa, mas ninguém perceberia. Logo seu irmão estaria pentelhando a sua paciência e ela daria seus gritos estridentes e ficaria tudo por isso mesmo. Difícil mesmo seria a hora de mostrar a redação incompleta em casa, com a observação, certamente, destruidora da professora. Maria resolve esquecer. Até o dia seguinte ela encontraria uma boa desculpa. Se fosse mesmo inteligente, saberia encontrar uma saída honrosa.
O som dos passos em sapato alto anunciava que a professora já estava chegando à sala de aula. O barulho era mais alto que nos dias normais. A escola tinha um porão embaixo e os corredores eram de madeira, somente nas salas a construção era de alvenaria. A julgar pelo barulho ali entraria um furacão vestido de mulher. Chega o momento tão temido e esperado. A professora entrega todas as redações, menos a de Maria que sofre calada vendo o papel na mão dela.
- Esta é a redação de uma colega de vocês. Eu vou ler.
Lágrimas começam a correr pelos olhos de Maria. Ela será humilhada na frente de todos os colegas.
Ao terminar a rápida leitura a professora completou:
- Foi uma pena que Maria não nos brindasse com o diálogo que teve com as árvores. A redação não está completa, mas Maria não me engana. Estamos diante de uma futura escritora. Eu lhe dei a nota máxima, mas ela vai levar a redação para casa e concluir.
Professora Paciana (era esse o seu nome) era uma mulher de menos de um metro e meio, usava sempre preto, guardando o luto do marido. Era uma pessoa suave. Não colocava medo nas pessoas. O medo estava na cabeça de Maria. A professora morreu no final daquele ano. Não viveu para ver as primeiras reportagens de Maria e nem ficou sabendo que foi uma das incentivadoras na carreira que escolheu. Ser escritora foi um sonho que Maria nunca chegou a ter.

O caminho de volta

Foi há muito tempo, talvez obedecendo os ciclos da vida que mudam de 7 em 7 anos, que criei meu primeiro blog. Amei a experiência. Ele ainda está lá (www.segredosdedemeter.blogger.com.br) e alguma coisa eu vou republicar aqui, mas a idéia é escrever coisas inéditas, contos, crônicas, reflexões. O primeiro virou livro "Histórias de Maria", mas nunca teve a intenção de ser uma obra literária. Este blog também não tem esta pretensão. Escrever facilita meu encontro comigo mesma, obriga-me a me ler e, consequentemente, a enfrentar meus fantasmas. Vida para mim é importante a partir do momento que vivencio cada experiência e compartilho as minhas lições. Então, o primeiro passo está dado.