(Whaterhouse)
A vontade de Maria era amar menos João. Angustiava-se por vê-lo reprimir seus impulsos, racionalizar tudo e transformar em teorias matemáticas situações do dia a dia. A hipersensibilidade atuava em sua vida como um calcanhar de Aquiles. O ponto onde as pessoas o atingiam e o faziam sofrer. Ela não queria que sofresse, queria que ele sentisse, mas não conseguia descobrir o mecanismo para o sacudir, provocar nele uma reação. Não seria necessariamente mudar a sua própria natureza, mas faze-lo entender que é humano, que tem direito a gritar, a sentir raiva, explodir. Como seria bom vê-lo se descontrolar ainda que fosse uma única vez. Mas não poderia ser Maria a provocar essas atitudes nele, sob pena de perder para sempre seu amor. A relação entre eles já era complicada. Eram opostos em tudo e a aproximação entre eles já era por demais insólita.
João foi um menino calado, introspectivo, tinha dificuldades de relacionamento com garotos da sua idade. Franzino, não se adaptava aos modos grosseiros dos meninos. Afastou-se dos esportes, das competições de xixi, de espreitar as meninas, das brincadeiras de rua. Não aprendeu a jogar bola, a empinar pipa, nem andar de skate, de patins e nem mesmo de bicicleta. Inteligente, jogou nesta característica a sua tábua de salvação. Embrenhou-se muito cedo no caminho da leitura e aos poucos arquitetou seu próprio mundo, rico em personagens imaginários; impenetrável por estranhos. A infância passou dentro da normalidade de uma criança retraída que conseguia se superar angariando elogios e a aprovação dos pais. Acho que nunca quebrou uma vidraça do vizinho, ou teve consciência de que estava preparando uma cilada para o galã da escola. Não teve contato com sua própria maldade.
A adolescência transformou-o em um rapaz tímido, atraente por seus dotes intelectuais, seu olhar tristonho e gestos suaves. Percorria com desembaraço os labirintos do seu cérebro, a ciência era uma ferramenta poderosa para os seus conceitos e para a compreensão do mundo. Mas não conseguia entender suas entranhas. Não percebeu que ao se isolar em si mesmo, tornou-se idealista, o que em termos práticos, escondia seu egoísmo. Sem ter com quem validar seus próprios conceitos Fabrício tornou-se um fenômeno no campo do conhecimento. Suas teorias eram perfeitas e, quando testadas, ainda poderiam ser direcionadas para o resultado que ele queria. Sua crueldade estava restrita ao pensamento, às conclusões que chegava, que mesmo expressas (às vezes em verdadeiras pérolas literárias) não revelavam a repressão acumulada ao longo dos anos.
Maria, por sua vez, desde que nasceu já dava demonstrações de que não aceitaria nada calada e que não se curvaria diante da possibilidade de uma batalha. No berçário ainda, ganhou o título de mais chorona. Sabia subir em árvores, aprendeu a nadar, sem técnica, mas aprendeu sozinha, o suficiente para não morrer afogada em rio. Trocou a reposição de sua boneca quebrada por uma bicicleta. Jogava finca, betsy, queimada. Não era boa em nada, mas não aceitava a derrota sem tentar. Sofria quando era marginalizada na aula de educação física. Preferia estar com os meninos, entre os quais sua fragilidade era justificada por ser mulher, e vivia em constante briga por causa dos ciúmes do seu irmão, que cuidava dela como um galo de rinha. Sempre achou a vida dos meninos mais privilegiada que das meninas. Eles tinham o que ela mais desejava: liberdade. Ainda assim, Maria era uma menina meiga, de gestual delicado, de muita sensibilidade. Gostava de música, dança, e desde bem pequena já fazia teatro. Gostava de declamar, mas só fazia se a platéia fosse respeitável.
- Deixa juntar gente, reclamava.
Nunca soube se era tímida porque a vida sempre lhe colocou em situações que tinha que se mover com desenvoltura, escondendo de si mesma seus medos. E assim ela formou sua personalidade, como uma moça valente, guerreira, brava. Também tinha suas máscaras e em nada poderia ser diferente de Fabrício. Aprendeu a ser dissimulada, como todas as mulheres, e a usar disso para se defender do mundo que sempre lhe pareceu hostil. Sua oralidade desde o berçário se manifestava na sua facilidade de expressão. Maria sempre procurou se equilibrar entre os extremos. Despertava nas pessoas amor e ódio. Nunca lhes era indiferente. Os que conseguiam quebrar a resistência inicial, não raro, encontravam uma moça insegura, cheia de medos, de sentimentos de menos valia que se confundiam com sua enorme capacidade de doação.
É sempre difícil e arriscado relacionar a generosidade, o idealismo, a timidez, ao egoísmo, à própria vaidade, à arrogância intelectual. Assim como é complicado entender que atrás de cada exibido, existe um tímido. Todo ser humano é um pouco assim, tenta se esconder, procura sublimar seus defeitos para que a vida em grupo lhe seja possível. Para Maria era mais fácil fazer, para João o fácil era saber. Nenhum dos dois possuía o saber-fazer.
Agora Maria e João estavam ali, frente a frente, um verdadeiro confronto entre a teoria e a prática, o empírico e o científico, o passado e o futuro. João quer eternizar o sentimento que os une. Maria conhece seus limites, não pode tocá-lo, mas é o que ela gostaria, beijar cada centímetro do seu corpo, sentir seu gosto, ver sua pele se retrair e arrepiar ao toque da sua língua. Sentir seu cheiro. Acariciar seus cabelos. Massagear-lhe os pés. Misturar seus corpos. Fazer com que a ardência do seu aqueça a frieza do dele. Não importa se ele se afastar depois, ela o quer vivo, vibrante. Maria pensa na eternidade, nada é eterno, nem mesmo aquele amor ideal. Não existe verdade, ninguém sabe o que é certo ou errado, a vida vale pelas lições que aprenderam, pela troca e equilíbrio entre as suas diferenças. Felicidade é lucro.
Maria é mulher, fala de vida, de experiência, de sentimentos, de sexo, de lições e apreendizado, um universo identificado por qualquer mulher (e até mesmo homem). Ela sou eu, a outra, todas elas, qualquer mulher, uma mulher qualquer. É a mãe, a dona de casa, a profissional, a prostituta, a religiosa, a vencedora, a fracassada, a lutadora, a cansada, a jovem, a velha, a sábia, a louca. Não é Maria por acaso.
Na sequência dois belos contos, opostos em seu conteúdo, mas com igual carga de sensibilidade e erotismo. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada de novo...Este é mais comportado, ou contido, não sei...Mas Maria é imprevisível circula com muita desenvoltura em todos os campos do comportamento humano. Como na vida!
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