quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Era sapo!


Imagem de Leon Bonnat
A semana se arrastava com dificuldade. Vazia de emoções, Maria toma uma decisão que certamente a tiraria do marasmo. Resolvera extirpar aquele amor, que como a semana vivida se arrastava, seco, árido, infértil. Desde que conhecera João não conseguia mais se interessar por ninguém, mas João era instável, frio, preconceituoso. Vivia sob uma redoma com medo que alguém descobrisse suas fraquezas. Aparentemente era um rapaz simpático, agradável, bonito. Inteligência e sutileza eram suas características mais marcantes.
Esse comportamento paradoxal, visível apenas àqueles poucos que rompiam suas barreiras, atava Maria a João, quase que de forma neurótica. Já disse Chico Buarque que cabeça de mulher é para ninguém entender, "olha, você tem todas as coisas/ que um dia eu sonhei pra mim/ a cabeça cheia de problemas /não importa / eu gosto mesmo assim". Só mesmo as marias.
De poucas palavras, gestos lentos e um ar alheio às coisas comuns do cotidiano, João colecionava mulheres lindas. Havia um acordo tácito entre elas, afinal sabiam que ele não ficaria com nenhuma. Elas se arrastavam, se enrolavam nele como verdadeiras gatas, lânguidas, melosas, sensuais. Maria não fugiu à regra, era mais uma tolinha a lhe estender tapetes. Ele queria ser conquistado. Ela queria conquistar.
Foi assim, enfrentando uma dura e desleal concorrência que João passou a fazer parte da vida de Maria e quando ela percebeu, ele já estava lá há dois anos. Saiam juntos para beber, dançar, acampar e Maria sempre ali firme esperando a hora que daria o bote. Sonhava em fazer amor com ele e seu desejo era tão forte quanto a sua incapacidade para perceber que alguma coisa não estava certa naquele relacionamento.
A partir do momento que decidiu não dar mais continuidade àquela farsa, decidiu também que não sairia do relacionamento sem antes experimentar juntar as carnes. As férias estavam terminando e saíram para acampar. Desta vez ela conseguiu convence-lo de ir apenas os dois. Escolheram uma cidadezinha do interior, que recentemente haviam descoberto. A natureza na região era pródiga, cheia de pequenas cachoeiras e recantos inexplorados pelo homem. O verde e o ar puro tinham a capacidade de transportar as almas para uma outra esfera. No ar, pontos brilhantes, como se fossem a visão de pequenos átomos, dançavam a sua frente.
Maria partiu para cima de João, sem lhe dar tempo para processar o que estava acontecendo. Agora, ela não sabe explicar o que aconteceu, será que a culpa foi sua?
João, impotente, tentava se justificar. Que diabo de homem era aquele, que tinha medo de mulher? Porque a necessidade de estar sempre rodeado delas?
Maria chora. Sem máscaras, seu príncipe não passava de um sapo.

(In, Histórias de Maria)

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O estrangeiro



Imagem de Shane Wolf
O clima de alegria no ambiente não era real. Por trás de cada sorriso escondiam-se almas solitárias, sedentas de toques e afetos. João estava ali, como se comandasse um grande espetáculo, mas completamente perdido de si mesmo, sem saber se encontrar em meio a tantos sentimentos. Sentia os olhares das mulheres, afinal, ele era um garoto bonito, mas como se situar? Não sabia que pedaço seu ele poderia entregar naquele ambiente que lhe era tão estranho. João, contido em seus pensamentos, imobilizado em seus gestos, sufocado em sua sensibilidade, sentia-se algemado pela situação.
De longe, Maria o observa, atraída pela curiosidade dos jogos que ele travava para poder esconder-se  No seu isolamento interno, único espaço que seu ser expandia,  pode-se observar o gestual delicado e estudado de um corpo que pedia silêncio. Procurava  ar, precisava respirar e se organizar por dentro. Seus olhos se cruzam com o de Maria. E nessa fração de segundo Maria encontra seu olhar de homem rendido. O jogo da sedução exige que haja pelo menos dois jogadores. Sua alma era prisioneira de seu corpo. João jogava consigo.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Ah! O tempo!

The Tender, de Mary Cassat
Muitas vezes eu escrevi sobre o tempo. Entendo que nós, humanos, temos dois grandes limitadores, o tempo e o espaço. Sinto mais o tempo. O espaço “está sendo alterado” pela internet, mas o tempo. Ah! O tempo! É possível fazer o tempo parar, de forma a nunca mais envelhecermos? Sempre vi o envelhecimento com os olhos da compreensão, da maturidade. Nunca entendi completamente os preconceitos contra a velhice.
Quero ficar velhinha sim. Quero ter muitas histórias para contar. Quero passar experiências aprendidas – mesmo aquelas em que a lição demorou a entrar na consciência – ou aquelas que não deram certo, ou mesmo os equívocos que infalivelmente nós cometemos ao longo da vida. Envelhecer é momento de reconciliação com erros e fracassos. É momento de reflexão, de contemplação de aceitação. É uma sorte não morrer antes!

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Para sempre

Imagem de Malaquias Belo

Ao bater os olhos na imagem do jornal, Maria sentiu seu coração bater mais forte. Não restava dúvida: aqueles traços em estilo surrealista só poderiam ser de Ezequias Brandão. Mais de 15 anos sem vê-lo, no entanto, a identificação continuava a mesma. Sem pensar duas vezes, Maria busca o fio da meada para reatar uma relação que sempre foi marcada por profunda identidade espiritual. Fecha os olhos, faz retrospectiva, vendo o tempo passado voltar e contar uma história por meio de imagens que a memória armazenou. Sente saudades, um sentimento nostálgico que se mistura à alegria presente. Reencontrar esse amor que se traduzia em imagens e silêncio mexia com as entranhas de Maria, uma sensação emoldurada por boas, profundas e inesquecíveis lembranças.
O dia não amanhece como todos os outros. Maria teve uma noite povoada de sonhos surreais e se prepara para ir ao encontro do insólito; mais uma vez, iria à luta para vencer os limites do tempo e do espaço.
Impossível prever os resultados daquele encontro.
Começam então pelos relatórios do tempo. Casaram-se no mesmo ano, têm filhas da mesma idade e com o mesmo nome, as datas das grandes transformações também coincidem. Maria deixa a fábrica de chocolate, na mesma época em que Ezequias Brandão, cria um novo estilo artístico e mais comercial, que firma seu talento em outro mercado. O lançamento do livro de Maria coincide com o período em que ele retorna às telas. O recomeço encontra então seu ponto de partida.
A tarde inicia com uma visita à galeria onde Ezequias está expondo. Maria observa cuidadosamente cada quadro. Ali também, observa que o artista recomeça de onde parou. Nada de bananas cortadas em rodelas voando no espaço, o masculino encontra expressão, apenas o mito de Eva ainda se mostra em conflito (simbolizado pela maçã verde, cortes feitos com lâmina e em presença de sangue) e em diversos planos - janelas ou portais da existência. Maria busca o humano. Não há ainda uma presença real, mas em algumas telas já se pode perceber elementos da vida. Os antigos ovos que se explodiam ou se dissolviam, se transformaram em formas orgânicas "humanovegetais" que se assemelham a cromossomas, ou espermatozóides, ou larvas, ou algas, e que se sobrepõe, em outra perspectiva, transformando-se em verdadeiras cidades-fantásticas - supostamente metafísicas - de perturbadora solidão.
Há na obra de Ezequias uma aparente sensualidade pela presença de elementos fálicos e eróticos, mas percebe-se também que não é essa a pretensão. A expressão está mais para a indagação dos mistérios que envolvem o mito da criação e a ruptura com o paraíso, tudo dentro de um contexto simbiótico e contraditório de lirismo e dor, cujo resultado é uma obra que transmite a solitária solidão de Ezequias.
No texto do catálogo a confirmação do que Maria percebia: "Após percorrer outros caminhos em modalidades diversas, aprimorando outras técnicas, o artista retoma seus antigos aspectos da vertente surrealista que marcou sua personalidade artística no começo da carreira, em que predomina o virtuosismo técnico, tanto na execução da pintura como no engajamento temático que define a sua estética com rigoroso apuramento técnico e excelente resultado de plasticidade".
Um café tomado depois da chuva em ambiente acolhedor, algumas palavras para marcar momentos importantes vividos no passado, a constatação das mudanças que aconteceram ao longo do tempo, mas que não alteravam o profundo e inexplicável amor que unia as duas almas. Ligados por essa energia lírica, intimamente eles sabem que nunca vão promover um rompimento, ainda que seus caminhos insistam em seguir direções opostas.
É noite quando os dois se separam. No ar, inúmeras possibilidades, mas somente o tempo - sempre o tempo - poderá explicar a magia desse encontro.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Idílio

Idylle, de Willian Bouguereau
Não era um bom dia para fazer a faxina, o calor estava insuportável, a vontade de voltar para a roça, e descansar em uma sombra para sentir o vento no rosto, ficava cada vez mais forte. Ainda assim Maria se levanta, respira fundo, e parte para mais um dia de trabalho. Enquanto jogava água na janela ela aproveitava para se refrescar nos respingos e organizar seus pensamentos. Bailam na lembrança cenas do campo, dos encontros furtivos com João, da alegria da juventude, da irresponsabilidade do amanhã. Tinha os olhos fechados e os movimentos da faxina acompanhavam o ritmo preguiçoso das lembrança. Era como se ele a olhasse. No limite do prazer e da posse, um homem olha para uma mulher como se meditasse sobre o princípio da vida. Queria tê-la em sua consciência sem importuná-la em seu sonho. Ela dormitava, passando lentamente a flanela sobre a mesa de vidro. Também ela, em toda sua simplicidade, precisava se acertar com o tempo. A interioridade sexual era tão intensa, os corpos tão ausentes, que a sensação de serem tocados parecia uma oferta divina duma imaginação profundamente amorosa. Havia muito mais vida no passado, ela sabia, mas precisava viver o presente. De repente, o celular toca e tira Maria de suas reflexões. João é apenas uma lembrança que se desvanece.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Carta de Maria

Imagem: Penning A Letter, de George Goodwin Kilburne
Hoje tive vontade de escrever de mim para mim. De buscar no próprio âmago explicações para esta existência. Não sei se a vida é um circo de horrores, mas os ciclos são visíveis. Dias, meses e anos marcados por ganhos e perdas, altos e baixos, dias de entusiasmo e euforia, dias de amargura e depressão, dias de trabalho intenso e de desemprego. Sobrevivo.
Estou de bem comigo, mas tenho tido pouca vontade de escrever. E quando consigo vencer a minha barreira, surpreendo-me completamente muda. É a felicidade (ou seria a ausência de infelicidade?) que me bloqueia? Ou seria a sensação de me sentir espectadora da vida, quando nada mais é novidade, quando o ser humano perdeu, para mim, o gosto da descoberta?
Os grandes romances, os melhores poemas de amor parecem mesmo se nutrir da tragédia, dos desencontros, da infelicidade. Pior que a ilusão que nutre minha pobre literatura, é a apatia em viver. É não saber o que é necessário para ser feliz. É a certeza de que tudo o que existir depois da vida será lucro, porque, aqui e agora, tempo e espaço limitam meu ser. Pior que esta inadequação é me ver frente a frente com a repetição dos ciclos. É não ter criatividade suficiente para me superar cada vez que no jogo da vida dá a lógica.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Janela

 At the window, de Carl Vilhelm Holsoe
Houve um tempo que , de onde me sentava para trabalhar, a única visão que tinha pela janela era um pé de jabuticaba. Época fértil, criativa, povoada de sonhos e fantasias. Vi florir, nascer e amadurecer os frutos. Vi larvas, casulos se formando e borboletas romperem para a vida. Ouvi o cântico das cigarras. Era como se minha vida se entrelaçasse com aquela árvore. Hoje me pergunto o que vem pela frente. Na solidão de minha sala, vejo o topo das árvores – uma mangueira, um coqueiro e um cajueiro – e topos de prédios. Mas vejo mesmo é o céu. Ele toma conta de quase toda janela. Às vezes azul e com nuvens brancas, outras cinzentas, chuvosas. E são muitos os sons. Pássaros que não identifico, bem-te-vis, pardais, latidos de cachorros, carros que passam longe. Um tempo, de novo, para ficar comigo.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Manhã de Amor


(Imagem: Le jour, de Willian Bouguereau)
Hoje acordei com algazarra de pássaros em minha janela. Temperatura amena e disposição física para saudar esta manhã clara de céu azul. Da cama para o chuveiro foi necessário apenas um salto. Um movimento mais rápido que o de um pião no jogo de xadrez. Manhã, tão bonita manhã, canta o meu coração...