
Em menos de meia hora Maria já estava providenciando sua viagem para o Rio de Janeiro. O motivo bem que poderia ser o Réveillon, a queima de fogos em Copacabana, a reunião com os amigos que também estariam lá. O motivo era bem outro e a passagem do ano foi solitária. Da sacada vê alguns fogos de artifício na orla e na Marina da Glória; mais distante, o pipocar de luzes e cores em Niterói. Nenhum espetáculo. Grossas lágrimas lhe escorrem pelo rosto. Marcava-se naquele momento mais um reinício, no tempo e na vida. Recomeçar, reestruturar, refazer-se, com algumas diferenças, desta vez não precisava reencontrar-se consigo mesma. Há algum tempo suas idas ao Rio de Janeiro não tinham o mesmo sabor e entusiasmo da sua juventude.
Nos dias que se seguiram Maria pôde observar – e aí não sabia explicar se era apenas a sua percepção – que o Rio de Janeiro não era mais o mesmo. Cheirava a mofo, à decadência; as paredes do casario antigo, por todos os lados, estavam infiltradas. Ao subir e descer a Ladeira Nossa Senhora da Glória, observa o muro de pedras musgosas do Outeiro, não pode negar a sua beleza histórica. Entre uma pedra e outra, nascem árvores, plantas, samambaias e as raízes expostas evidenciam o capricho com que a Natureza tece o tempo. Na rua calçada com paralelepípedos sabe que terá que usar sandálias rasteirinhas, porque assim como o Rio envelhecia, ela também. Saltos altos e elegância naquele trajeto, não lhe pertenciam mais. Chegou exausta ao topo.
Mais dois dias e Maria fazia seu caminho de volta para casa. Deixava parte de uma história para trás. Vivenciou momentos de muita dor, de renúncia, de desapego. De despedidas. Pôde compreender que é na memória que ficam os verdadeiros registros e os motivos da angústia; que uma caixa de fósforo de papel, com a propaganda de um restaurante, é mais difícil de jogar no lixo, que um aparelho de televisão ou qualquer outro eletrodoméstico. Que o cheiro de mofo se mistura ao ranço da vida. Buscou forças em esconderijos interiores, sabia que aquela não era a sua história, mas era co-protagonista. Daqui pra frente a sua vida não será mais a mesma.
"Amar o perdido
ResponderExcluirdeixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão."
(Carlos Drummond de Andrade)
Tenho sempre a impressão que sei quem é meu comentarista anônimo... Seja lá quem for, posso dizer do post não-comentário que todo amor é bem vindo. Amor nunca se perde e na pior das hipóteses retorna ao coração de origem. Drummond parece que sabia bem o que estava escrevendo.
ResponderExcluirClovis Garcia no Facebook: Imperial Irmandade da Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Texto sublime que encanta.
ResponderExcluirClóvis, obrigada! Vc sabe a importância do seu comentário para mim.
ResponderExcluirTexto sublime... bonita a expressão do Clóvis! E que coragem a sua de dizer que a Cidade Maravilhosa cheira a mofo! Eu também percebi que o Rio está velho, da última vez que estive lá...
ResponderExcluirObrigada Rosana! Mas mesmo assim o Rio de janeiro é lindo, né?
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