sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Um vôo de liberdade


A gente se desfaz de uma neurose, mas não se cura a si próprio (Sartre)

Um Triste Resgate

O verão tinha levado João para perto de seus filhos, enquanto o inferno se instalava definitivamente no coração de Maria. João andava monótono, sem vida, sem inspiração. A estratégia de Maria para ressuscitar João estava dando errado e ele, decidido a mostrar que estava realmente interessado na alma de Maria, continuava a agir como se o mundo fosse apenas pensamento. O que se sucedeu foi uma verdadeira serenata e a cada dia ela se surpreendia com a forma sutil como João se revelava por meio das músicas que tocava. Se ele tentou falar, Maria estava surda. Ouvia apenas os gorjeios tristes do seu pássaro cativo.

O poema de Menotti Del Picchia entrou em seu âmago e alterou o rígido esquema de proteção que Maria havia adotado para não sofrer mais. Se pressentires que amanhã estarás mudo, esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta . Ela (ou ele?) estava se esgotando na tentativa de se fazer compreender antes de calar? Um misto de saudade e compreensão passava a tomar conta de Maria a partir daquele instante. Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro, continuava Del Picchia, enquanto Maria se enternecia com as suas lembranças.

Respirou fundo, olhou-se no espelho da existência. Seria João seu eco e reflexo? Ele ainda tinha caminhos desconhecidos para ela e, além de tudo, seria uma oportunidade para compreender o significado da renúncia e experimentar apenas o sentimento do amor. Amor não precisa dar certo, basta que abra o caminho para entrar no mundo dos sentimentos. O amor irrealizado ainda tem outra característica: pode ser sublimado, universalizado. Transforma-se em mais amor. Amor que acaba é paixão, tesão, que não resiste à mesmice dos dias. Outro suspiro e a conclusão de que se permitiu viver até o final aquela experiência inédita. Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo. Que sabes tu do fim?

Aquele será um final de semana diferente. Acordou na sexta-feira disposta a revolver mágoas, mas principalmente, a resolvê-las. Acabou se colocando dentro de um turbilhão de sentimentos difíceis de serem identificados: a mágoa se confundia com dor-de-cotovelo, a raiva parecia amor reprimido, o amor maltratava como se fosse doença, a insegurança se vestia de indiferença. A luta pela verdade parecia uma briga com moinhos de vento. De tudo, ela tinha uma única certeza: poderia não haver resgate, mas a definição acabaria acontecendo.

Agora só consegue sentir de novo aquele vazio enorme. Vai precisar buscar forças extras para conseguir superar tudo. Em compensação, deve dar a aposentadoria merecida ao seu coração. Naquela idade não se pode esperar que a vida seja um conto de fadas, mas a experiência adquirida teria que ser capaz de transformar a relação a dois em um lago azul e sereno. Já que teria que amargar mais um fracasso, seria bom começar a aprender que essa serenidade pode ser conquistada na solidão. Maria merece envelhecer em paz profunda.

4 comentários:

  1. Nossa! Me doeu o coração ler...

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  2. Rô, já respondi três vezes. Não sei o que acontece que a resposta some... Concordo que seja uma história triste, como foi triste o dia de hoje. Beijos!

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  3. Olá Marley, obrigado pelas felicitações no blog d'A Negra. Ainda não conhecia este teu espaço aqui, que parece refletir muita serenidade. Serei leitor assíduo. Abraços, Marcus.

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  4. Professor Marcus, é uma honra tê-lo aqui. Sou leitora "quase" silenciosa d'A Negra e gosto muito da sutileza dos diálogos entre a literatura e as artes visuais. Seja sempre bem vindo!

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