terça-feira, 9 de junho de 2015

Domingo silencioso em Dachau

Monumento do escultor Glid Nando, que foi prisioneiro em um campo de concentração durante a guerra

Foi um dia muito estranho. Parecia que ninguém tinha amanhecido bem: ou era um mal-estar físico ou era um mal-estar emocional. Ninguém estava, desde o café da manhã, se comportando da mesma maneira. No ar havia um clima de azedume. As informações que eu recebia não eram verbais e, ao investigar o mundo não-verbal a gente abandona os mecanismos complexos da comunicação para entrar em um reino de cadeias primitivas, tão antigas quanto nossa existência sobre a terra. No mínimo pode parecer estranha esta afirmação em tempo de tecnologia avançada.  Cair no campo da interpretação pode parecer tão complexo e desconexo que as análises podem ser suspeitas.  No dia a dia, aprendi a apurar o senso de observação para as reações e expressões faciais, contar com minha intuição e buscar a sustentação naquilo que já conheço. Então vou ser logo categórica:  Dachau já pesava em nossas mentes antes mesmo de termos saído do hotel.






A viagem foi confusa, acabamos integrando uma turma com um guia inglês e lá no campo de concentração nossa turma (de cinco pessoas) se dividiu em três. Nem é preciso dizer que foi um dia triste, silencioso, em que mergulhamos na parte mais triste e sombria da história da Alemanha. Antes da viagem havia me envolvido numa discussão sobre o holocausto e enfrentei neonazistas que negavam o triste episódio. Então eu pensava em fotografar muito para poder mostrar na volta. Realmente fotografei vários documentos, mas passei o tempo todo com um nó na garganta, com o corpo arrepiado e a cabeça latejando, que as fotos não tiveram sequer o cuidado de seguir a ordem dos acontecimentos. Fotos, reproduções, anotações manuscritas, documentos, objetos, enfim, tudo para tornar possível conhecer os horrores que ali foram praticados. E não foram crueldades cometidas só contra os judeus. Os próprios alemães sofreram com tudo. As câmaras de gás, inclusive, foram tentativas de despersonalizar a morte. Não teria alguém para puxar o gatilho e ver cair pessoas inocentes. Muitos soldados alemães se suicidaram após serem obrigados a cometer atrocidades.



A Marcha dos Prisioneiros, escultura em bronze de Hubertus von Pilgrim, 1991
Chorei várias vezes e, ao tentar reproduzir tudo que senti, choro de novo. Não há lado a tomar. Há, isto sim, uma mancha negra na história da humanidade. Há, isto sim, a certeza de que qualquer um de nós, nas mesmas condições poderíamos agir da mesma maneira: tornando-nos carrascos, ou não suportando ser torturador e cometer suicídio. Há, isto sim, seres humanos dos dois lados e gente, como hoje, capaz de conviver em paz com a barbárie. Seres humanos não têm comportamento igual sob circunstâncias similares. Crianças diante de situações ameaçadoras podem chorar, rir, fugir, ficarem geladas, revidar, ou mesmo se submeter passivamente. Ainda assim, pesquisas mostram que há uma tendência a reações semelhantes em muitos seres humanos, então Dachau não deixa de ser um espelho. A luta pela vida se torna então em constantes batalhas travadas para vencer a si mesmo. Uma guerra que parece não ter fim, um quebra-cabeça sem solução, como se diz na música do grupo Fruto Sagrado. Neste ponto, acredito, há identificação da guerra com a Senda Cósmica, quando o guerreiro não age mais como pessoa, mas como uma grande força, como flecha disposta a atingir o alvo. Vencer pode então significar saber escolher entre os diferentes aspectos da experiência humana reflexos da Ordem Superior.

Termino então este post com o poema de Sylvain Gutmacker (1922-1948), um jovem judeu, estudante de farmácia na Bélgica, enviado para o campo de concentração em 1942. Sobreviveu às torturas no campo de concentração, mas não conseguiu sobreviver às lembranças do horror da guerra e suicidou-se em 1948.




Tristesse
Laufen (undated), by Josef Nassy (1904-1976)

Le vide de mon coeur
Ma brûlante douleur
Engourdissement mon âme
Pas de soeur, pas d’amie
Ô douceur infinie
Pour bencer mes sanglots

3 comentários:

  1. Como não chorar diante de tantas almas aflitas?? Como negar a existência da morte diante da prova concreta. Quantas pessoas vão morrer ainda por quê são diferentes no ser, agir ou pensar?? Deus tem misericórdia de nós e do mundo inteiro!!!!

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  2. É o resultado de alguém se julgar superior a outro, seja pela cor da pele, pelo credo, pela opção sexual... enfim esse é o produto que temos e o preço que pagamos pela intolerância.

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  3. Estou ainda envolvido nestes debates sobre o Holocausto. Mais triste di que está tragédia em si e saber que muitos indivíduos ainda querem desrespeitar a memória das vitimas negando descaradamente este ato de insanidade.

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