The passion of music, de Andrew Atroshenko |
Enfim chegamos a Paris, embora ainda tivéssemos
mais dois dias de viagem, para Lourdes e Nevers. Conheço primeiro as entranhas parisienses,
seu subterrâneo, pois os dois primeiros dias ficamos como marmotas, só andando
de metrô. Mas nos metrôs pude conhecer uma Paris que não está nos filmes, nos
relatos românticos, na imagem sonhadora e romântica que se tem de Paris. Nas
veias da cidade circula a vida real. Os metrôs tem vida de gente que trabalha,
que dorme enquanto não chega à sua estação, que ostenta fisionomias cansadas e
olheiras, que os cabelos não seguem os ditames da última moda, e nem os
sapatos, nem os casacos. Isso é o geral. Algumas linhas são mais chiques,
outras mais pobres. Depende do lugar para onde se vai. Acho que só não pegamos
mesmo duas linhas de metrô e como ficamos 15 dias lá e essa opinião não mudou,
tenho-a como verdade.
Autor desconhecido |
Nos bastidores de Paris também se vive emoções e,
nesse sentido, a vida de músico bate forte em mim. Fico desolada vendo músicos
tão bons (nem todos) tendo como palco apenas os corredores das estações de
metrô. É de cortar o coração, por um lado, mas por outro, é muito bom ver como
são respeitados pelos passantes. Não são pedintes. São artistas que não tem onde
mostrar sua arte, ou que estão divulgando seus CDs – já que hoje é
relativamente fácil fazer uma produção independente. Enfim, ao descer dos trens
e ser invadida por música ajuda a manter o equilíbrio emocional, tira a gente
da dureza da vida, dos pensamentos pessimistas. Para silenciar vozes externas preciso sempre de boa música. Claro está para mim que a música tem o poder de mexer com nosso ser interior, criar imagens e evocar lembranças.
Saíamos cedo e encontrávamos uns músicos nas linhas
que estávamos usando. Quando voltávamos já no fim da tarde eles ainda estavam
lá, tocando sem parar. E nem todos tinham o mesmo comportamento em relação à platéia.
Em Viena, por exemplo, teve um violinista que executava com muita sensibilidade
Adágio, de Albinoni, e quando fomos
filmar, ele parou de tocar. Só falava o alemão, mas pela gesticulação e o pouco
inglês pudemos entender que ele se desculpava, que dizia não tocar bem e que
não estar vestido de forma adequada. Deixamos, claro, de filmar e ele voltou a
tocar. Em Munique também, um grupo que tocava à noite, próximo à Marienplatz,
também fez um sinal para que não filmasse. Não sei dizer quantas vezes não consegui segurar as
lágrimas. Num desses dias fui tomada por Vivaldi, La Stravaganza, uma música
bem alegre, e senti meu coração pular. Tive o impulso de parar, eu andava a
frente dos meninos, mas me contive. Exultei quando eles pararam para ouvir. Era
um grupo grande e me tocou profundamente. Tocou tanto, a ponto de me fazer
comprar um CD por 20 euros. Vimos o grupo outras vezes, e eu conversei depois
com um dos integrantes que oferecia o CD. Fiquei sabendo que eram todos profissionais,
pertenciam a uma associação chamada Madrigal de Paris.
Durante toda a viagem, por todos os países que
passamos, os músicos de rua chamavam minha atenção, fosse por sua postura, pela
qualidade do som, pela peculiaridade de seus instrumentos, ou mesmo pelo olhar
do musicista. Música foi capítulo à parte.
Reproduzo aqui o pensamento de meu irmão em relação principalmente à
Praga. Há sete anos, quando ele esteve lá pela primeira vez, os músicos na
Ponte Carlos IV tocavam músicas tchecas, desta vez, ouvimos o de sempre: jazz,
possivelmente para ser familiar aos turistas. Em Budapeste tem grupos regionais
e apresentações de danças folclóricas em algumas praças, mas não tivemos a
sorte de encontrar nenhum dando essa colher de chá. Mas há casos que
dependendo da música, não importa onde ela toca. Foi assim com “As Time Goes
By”, tocada por um senhor bem idoso em saxofone. Viajei na imaginação. Um
país que teve suas portas fechadas para o mundo por tanto tempo, como será que
ele guardou a lembrança dessa música? É uma música da década de 30, época em
que Praga é cedida à Alemanha Nazista
até o final da Segunda Guerra, quando passa para o domínio da União Soviética.
Só em 92 com a dissolução dos laços tchecos e eslovacos, ela passa a ser a
capital da República Tcheca. Fico então pensando, quando foi que ele aprendeu
essa música. Que informações recebia nessa época de fechamento. Enfim, a
imaginação é nossa verdadeira liberdade, pois nos permite completar todo vazio
que temos seja de informação ou de estado emocional.
Classical music, Kristc Snezana |
Quando fechamos os olhos, tapamos os ouvidos,
buscamos a solidão, percebemos que nem sempre conseguimos calar as vozes e os
pensamentos fogem, mas às vezes conseguimos agarrar um deles e trazemos para o
mundo concreto, tentando compreender seu significado e desvendar um pouco mais do
que tem escondido Isso dá conteúdo para a formação do pensamento, mas a inspiração surge do nada.
Escrever é assim. Decifrar pensamentos e observações e colocá-los em
frases construídas, com um conhecimento básico da língua. Para expressar o que
sentimos, nem sempre precisamos ser grandes gramáticos, se assim fosse, os
melhores escritores seriam aqueles que cursaram Letras. Acho que o mesmo
acontece com a música. Alguns compositores são especiais. Parecem compor com o objetivo de levar as pessoas ao clímax. Assim, a música que tanto mexe conosco, cumpre sua função de nos tirar do cotidiano e nos transportar para aventuras desconhecidas e, ao mesmo tempo familiar, de descobrimento e encantamento. Gosto de escrever ouvindo
música. É estranho, porque na família, sou a única que não tenho
habilidade musical.