terça-feira, 1 de setembro de 2015

Catedral de Notre Dame: ciência ou fé?

L´Île de la Cité et  Cathédral de Notre Dame, de Marie-François Firmin Girard   (1838-1921)


Alguns escritos sagrados afirmam que “no princípio tudo era treva, até que se fez a luz, porém a luz não veio das trevas, porque as trevas são a ausência de luz”. Essa aparente incoerência é a fonte infinita da razão, da ciência, da luz que brota das trevas, do conhecimento que, por mais que evolua, nunca será o absoluto. Na ponte sobre o Sena, tendo como moldura a Catedral de Notre Dame e Maria me cutucando sem parar, eu estava anestesiada. Flutuava em lembranças não vividas, cheiros que me pareciam familiares sem que nunca os tivesse sentido, e uma vontade estranha de chorar. Fico pensando como construímos nossos sonhos e como precisamos deles para suportar a realidade. Há quatro anos, quando ainda estava sob o impacto e euforia do presente (a viagem foi presente de Natal de meus irmãos), recebi a notícia que estava com câncer. O sonho, irrealizado até então, ajudou-me a ter coragem e a manter viva a esperança. Quando o desânimo batia forte e a depressão me rondava, meu irmão ligava contando de suas pesquisas e roteiros, perguntando como estava meu francês e (acho) era mesmo para me animar, para não me deixar esquecer que ainda tinha vida pela frente e que ela podia ser melhor.                                                                                               



O tempo de trevas passou. A viagem teve que ser adiada três vezes. No primeiro ano eu sentia muitas dores, os braços ainda não tinham recuperado o movimento. No segundo ano, meus ossos pareciam ter ido pro pau, eu não andava sem mancar, não havia uma única junta em meu corpo que não sofresse dor aguda. Estava com fibromialgia, uma consequência do câncer. E no terceiro ano foi o casamento de minha sobrinha, que acabou me tirando o prazer da companhia dela na viagem e o receio de me ausentar e deixar meus idosos. Porque estou escrevendo sobre isso? Já faz tanto tempo. Porque durante todo esse tempo eu pensava: ainda vou agradecer pela minha cura na Catedral de Notre Dame. E antes mesmo de entrar na Catedral, todos esses pensamentos voltaram. Eu estava completamente fora de órbita. Acho que por isso, demorei tanto para retomar os posts de Paris. Nunca vou conseguir reproduzir o turbilhão que tinha por dentro.Confesso ter tido um lance de desânimo quando vi o tamanho da fila para entrar na Catedral, mas a fila era tão rápida que decidimos entrar naquele dia. Seria naquele dia ou só em uma próxima viagem. Dentro, o sentimento foi outro. Como sempre, muita gente, muita câmera e celular registrando as imagens, e, ainda que estivéssemos sem pressa, não existia lá dentro um cantinho que convidasse à meditação. Senti a Catedral mais como museu que igreja. Claro que rezei e agradeci mesmo com o barulho e a movimentação. Também já tinha rezado bastante em Lourdes e Nevers, que não me senti em falta ou frustrada.




Era tanto detalhe, tanta escultura, tanta pintura, tanta informação que desisti de fotografar e passei a filmar, mas os filmes não ficaram bons, ficaram muito escuros. Não sei onde estava com a cabeça de usar só o celular. Eu havia levado a câmera, mas não a usei nenhuma vez. Sorte que Dedé e Marcelo registraram tudo e agora tenho três pen-drives com mais de 100 GB de lembranças e registros.
Na Notre Dame, como em todas igrejas que entramos na Europa, tudo é muito suntuoso e predomina o gótico. Eu estava tão bilolada que confundi O Corcunda com o Aleijadinho e, consequentemente, misturei o barroco e o gótico. Saí da fé para a arquitetura e da arquitetura para os obreiros. Mas a arquitetura é mesmo impressionante e penso como os mestres construtores passavam seus conhecimentos e segredos. Percebe-se claramente que essas obras não eram finalizadas em uma única geração. Não é à toa que se formaram em sociedade fechada. Imagino se hoje os novos engenheiros e arquitetos seriam capazes de se aventurar em construções dessa magnitude. E olha que a tecnologia avançou assustadoramente. Entendo porque os arquitetos gostam tanto de viajar para a Europa.
Volto então, mais uma vez, aos construtores. 


A grandiosidade das igrejas parece querer nos remeter à nossa pequenez, embora eu não saiba se seria essa mesma a intenção. Há muitos símbolos e esse é um universo fechado para não iniciados. Por isso é mais fácil pensar na vida. E eu estava ali: viva. A necessidade de crer, seja pela afirmação ou negação de algo maior que a vida mortal – com todas suas mazelas, ignorâncias e misérias – representa para o ser humano a esperança no futuro. Reduzir a vida, ao tempo de mortalidade, significaria tirar-me a necessidade de idealismo infinito, as justificativas de aspirações à evolução, que inspira as abnegações e dá forma às virtudes. Sem fé não existe religião. Por sua vez, a ciência também guarda seus mistérios, usa símbolos e fórmulas para exprimir sua profundidade desconhecida, mas partindo daquilo que é conhecido. A forma simbólica está acima da razão científica e a ciência não pode explicar, nem realizar a obra da fé. Fé e ciência, crer e saber não podem se confundir, mas também não podem se opor. Negar ou contestar, em nome da ciência, as decisões da fé, é admitir que não se compreende nem a ciência e nem a fé.

A Catedral de Notre Dame estava vista e havia cumprido sua missão para mim. Obrigada Deus pela vida!




segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Sonho realizado às avessas!

La Sorbonne, de Paul Joseph Victor Dargaud,

Maria hoje está impossível, agitada, feliz e me cutuca o tempo todo. Agora, com o olhar interrogativo,  ela me mostra uma cúpula redonda em reforma. Imagino que ali seja o Pantheon, mas me lembro do mapa e me parece que ele ficava distante do Jardim de Luxemburgo. Nada disso, é pertinho. Saímos do jardim e estou meio tonta, perdi o norte, a direção, embora eu não estivesse preocupada em me localizar o tempo todo. Estava com meu irmão e ele tem um senso de direção inacreditável. Ando abobalhada até chegar. Somente duas semanas mais tarde consigo ter essa localização clara em minha memória. No Quartier Latin estávamos próximos de tudo e nesse domingo andamos o tanto que conseguimos.

O Pantheon é uma edificação magnífica, suntuosa e foi idealizado para ser uma igreja dedicada à devoção de Santa Genoveva, originalmente deveria ser uma obra neoclássica, misturando o gótico e clássico, mas o arquiteto morreu antes e seu discípulo não seguiu exatamente o projeto original. Nada que diminua a majestade do edifício. Cheguei a ficar com dor na nuca de tanto olhar para cima, encantada com os detalhes e imponência das colunas. Atualmente o Pantheon é um mausoléu que guarda os corpos de pessoas famosas na história da França como Victor Hugo, Voltaire, Rousseau, Marie Curie, Emile Zola, Braille e outros, (ooops! Não, não estou hierarquizando os mortos.)

Saímos pela lateral em direção a uma igreja atrás do Pantheon, flanamos um pouco entre ruas com restaurantes e lojas de souvenirs e fomos para o lado da Sorbonne. Estávamos, Maria e eu, mergulhadas em lembranças e análise de sonhos. Quando jovem, fazendo a Aliança Francesa, construí um sonho que nunca realizei: o de fazer mestrado na Universidade de Paris. E agora eu estava lá, pensando em como teria sido, mas também derrubando um mito. O que poderia ter aprendido lá que não estivesse em livros? A convivência com estudantes franceses, conhecer “ao vivo” a cultura francesa. Claro, tudo isso teria sido muito importante para mim, mas não foi exatamente uma frustração, não foi determinante em minha vida. Conheci Paris de outra forma. Estudei por aqui.

Queria registrar aquele momento. Enquanto fotografo a lateral do prédio, um senhor que passava me provoca em francês, o tom de voz me soou irritado:
-  Savez  que vous  voulez photographier? Ici l'Université de Paris, Sorbonne.                             
- Oui je sais. Le rêve de petite  était d'étudier ici.
Falo isso e me assusto! Não pensei, não elaborei nada na cabeça, mas percebo que também me senti ligeiramente irritada. Era isso. Diz-se que o francês não gosta muito de turistas e eu senti a abordagem como uma provocação. Maria nessas horas é 10! Ela salta à frente mesmo para me proteger. Foi ela que atiçou: revida, revida! E ter respondido em francês parece que formou-se um tipo de empatia.
 -  Oui. Vous parlez français!, comenta com ar de admiração.
 -  Pas! Je parle très mal, mais comprends tout.
A partir daí entabulamos um papo de uns 20 minutos, em francês! Para mim foi a glória. Estava me comunicando, às vezes entrava um espanhol no meio, como quando ele me perguntou o que eu fazia no Brasil e eu respondi que era periodista. Juro! Jornalista é tão parecido com journalist que me esqueci.  Tudo bem. Ele entendeu. Falamos até de política. Ele me perguntou o tamanho da crise brasileira. E eu respondi que depois dos japoneses, o maior número de turistas que vi durante a viagem era de brasileiros e que a crise era uma construção da mídia. E aproveitei para falar das mudanças ocorridas nos últimos 13 anos.  Ao final ele me cumprimentou pelo esforço em me comunicar na língua dele, criticou os turistas americanos e desejou vitórias ao Brasil. Meu dia estava ganho!

Da Sorbonne nos encaminhamos para a Catedral de Notre Dame, mas antes de chegar, chamou a nossa atenção um jardim, ou pracinha, chamada “La forêt de la licorne”. Pelo que me lembro de ter lido na plaquinha, era um jardim típico de proprietários mais modestos,que reproduziam florestas. As árvores dali foram plantadas no século XIX, posteriores à idade média, mas mantinham as características de um mundo habitado por animais fantásticos e por homens e mulheres que tinham uma vida prazerosa. Uma espécie de cantinho para se esconder quando se sentiam excluídos.
Sentamo-nos um pouco para ver as crianças brincar, descansar, e colocar emoções no lugar.  Nunca sabemos o que a vida nos reserva. Entretanto, se olharmos para trás, no sentido de compreender a história, a nossa história de vida, veremos que mudanças aconteceram e sempre para melhorar algum aspecto de nossas vidas, ainda que pareça o contrário. Ter tudo não significa apenas poder comprar tudo. Existem coisas que não se compram e que, no entanto, são essenciais à qualidade de vida. A saúde é uma delas. O dinheiro pode lhe proporcionar tratamento, mas não garantir saúde. Agradeço a Deus pela saúde, por poder estar ali.  Então, aqui e agora, por mais efêmero que possa ser o presente, é tudo que temos. Ali em que o onde é indefinido e o agora não é quando, mas um tempo feito de instantes, de tal forma que viver o presente é uma arte.  Viajar no tempo também é arte, enriquecimento, exercício de imaginação.

Nossa próxima parada será a Catedral de Notre Dame.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Enfim, Paris na superfície!

Louis Theodore Eugene Gluck (1820-1898), In The Luxermbourg Gardens, Paris
 - Ei! Acorda, acorda! Vamos sair para passear, hoje é nosso primeiro dia na superfície de Paris, diz Maria, eufórica, me sacudindo.
- Oui...je suis a Paris!... penso eu enquanto me visto e os meninos descem para fumar. É um domingo ensolarado, temperatura por volta dos 16º C e pela primeira vez tenho dúvida do que vestir, acabei em uma estranha combinação de azul vermelho e bege. Não estava de todo mal, mas não foi meu figurino mais bonito. Tanta coisa borbulhava dentro de mim, que é difícil explicar em palavras. Por trás do sonho, existem histórias, informações e impressões de outras pessoas. Paris e Milão carregam a tradição e imagem de serem centros de moda, coisa que não faz diferença para mim, mas faria, se por acaso eu destoasse a ponto de chamar a atenção. Algo como os americanos que chegam com camisas toda estampada e escandalosas no Rio de Janeiro. Ufa! Foi tranquilo em relação a isso.
Quando comecei a estudar francês, ainda pré-adolescente, fiquei encantada com a língua. Achava-a de uma sonoridade gostosa, e para ler , mesmo sem conhecer todas as palavras, eu tinha a sensação de entender tudo. Não era bem assim. Eram livros didáticos, próprios para iniciantes, então era fácil mesmo. Somente mais tarde, na universidade voltei a ter contato com a língua e, para minha surpresa, eu ainda me lembrava de muita coisa. Tive a sorte de ganhar uma bolsa de estudo na Aliança Francesa, fiz o teste de nível e já entrei no terceiro ano. Fiz mais dois e a bolsa não incluía o curso avançado. Aprendi muita gramática e isso me ajudou pouco para o que queria na viagem. Explico: Eu queria soltar a língua, falar, conversar, mas ficar estruturando frases na cabeça só fazia atrapalhar. Tinha testado isso nos trens na viagem para Lourdes e Nevers. 


Estávamos no Quartier Latin então começamos a explorar Paris por ali mesmo. Andando por ruas aleatórias vi cartaz anunciando show de Gilberto Gil e Caetano Veloso no Palácio do Congresso de Paris, patrocinados pelo Carrefour e Fnac. Achei legal. Entramos no Jardim de Luxemburgo pela Port-Royal e o atravessamos inteirinho. Aí eu me senti como no clip de Mickey 3D – Paris t’es belle. A gente está ali, sente como é viver em Paris, mas Paris não nos pertence e nem temos sensação de pertencimento. Somos meros observadores. Domingo ensolarado de primavera e o parisiense estava fazendo piquenique. Os gramados cheios, crianças brincando e o astro-rei mostrando sua importância naquela parte da terra. Alguma coisa – respeitada a intensidade dos raios – como se estatelar ao sol em uma manhã de domingo em Ipanema. Ainda fazia frio, mas as roupas já eram mais leves. Nós mesmos já não usávamos o sobretudo. Falar da beleza e da imensidão do Jardim me parece desnecessário. A internet o mostra de todos os ângulos e formas.

Muita escultura, algumas tendendo ao naturalismo, outras mostrando linhas de grande delicadeza e graça com  caráter ornamental, impressionantes levezas esculpidas em mármore, fisionomias capturadas por artistas que o tempo fez anônimos, não que sejam anônimos, muitas obras estão assinadas, mas nós, míseros mortais, pouco sabemos deles. O Jardim de Luxemburgo é um museu aberto, mas como turista, é impossível olhar cada peça em detalhe. As fontes são maravilhosas. Foi divertido procurar uma escultura em meio a tantas obras espalhadas no imenso jardim. Queríamos ver a réplica da estátua da liberdade. Sabemos que Bartholdi fez várias réplicas da Estátua da Liberdade, uma inclusive está no Brasil. Outra está nos Jardins de Luxemburgo e foi um presente do artista ao Museu de Luxemburgo. A estátua é feita em bronze e serviu como modelo para a construção da estátua de Nova Iorque. Ela segura uma tábua com a inscrição da data de inauguração de outra réplica que está também em Paris na Île de Cygnes. Não sei quanto tempo ficamos por ali, mas eu teria ficado o dia inteiro se fosse possível.


A variedade de flores também enchia os olhos. Minha cunhada arregalava os olhos encantada com as flores , Maria me cutucava para me mostrar a satisfação estampada em seu rosto, e eu aproveitava para fotografá-la em sua espontânea admiração. Ela ficava verdadeiramente envolvida e amei que Maria tenha percebido. A beleza das flores inspira e atrai qualquer pessoa com sensibilidade suficiente para se deixar envolver por ela. Achava que depois do espetáculo de Keukenhof nada mais chamaria nossa atenção. Poderia até ser meia-verdade para mim, mas para minha cunhada era diferente. Ela buscava o perfume além da forma e da cor. Como se fossem gentes. Vejo isso como uma espécie de talento, capaz de enxergar beleza em coisas simples. E vejo talento em Maria que se atreveu a transformar a realidade em ficção. Inserir-se em outra cabeça e ter o atrevimento de escrever sobre pensamentos e emoções. Maria pede licença, é sensível e respeitosa, mas seu mundo só existe porque a imaginação lhe permite.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Reencontro com Maria


Imagem da internet

Retiro Espiritual em Lourdes e Nevers


Maria já está há dois dias na França, conhecendo as entranhas parisienses, e com a estranha sensação de que não deveria estar ali. Sua cabeça está fervilhando. Os sonhos que povoaram sua adolescência se realizavam, mas em contexto que ela jamais poderia imaginar. A vida de criança é lago azul e sereno, mas a de adulto é de fortes correntezas.  Não lhe é fácil ajustar o sonho à realidade, cujas essências são antagônicas. Havia muita expectativa para Paris e viajar a Lourdes e, em seguida, para Nevers foi sua salvação. Por ser um tipo de turismo religioso Maria pode ficar em silêncio, buscando em suas profundezas o equilíbrio que tanto precisava. Lourdes foi o encontro com suas dores, sufocadas nos últimos tempos, e rezar lhe fez muito bem. Maria reza muito, é rezadeira mesmo. Não toma um copo com água sem se lembrar da Poderosa Força do Universo e lhe pedir que purifique seu Ser.  Mas em Lourdes precisou se agarrar às repetições da Ave Maria e Pai Nosso para não se deixar arrastar pela dor.  Lembrei-me dos retiros espirituais que fazíamos no Ginásio Coração de Jesus. Eu não imaginava que ela tinha tanta dor guardada até que comecei a escrever este post, adiado por semanas. 

Em Nevers já havia apaziguado e ajustado seus sentimentos. Não sei se ver o corpo incorrupto fazia alguma diferença naquele momento, pois o que Maria buscava era mesmo se encontrar com outro tipo de fé, a mesma que havia deixado no tempo, junto com os sonhos de viver a França. Nos dois dias as lágrimas foram fartas. A missa em francês, completamente compreendida e sentida. Aproveitou para rezar e pedir por seus amigos e familiares enfermos, pela união da família, pela proteção divina de cada um que lhe pulava à memória. Em verdade, a religião também ajuda o homem a despertar para virtudes latentes. Lapidar-se e buscar a conduta adequada e intensamente prática. Foi mais fácil refazer os passos de Santa Bernadete dentro do convento. Acho que esse foi o caminho dos santos. Superar os obstáculos da caminhada. Encontrar portas fechadas faz parte de nosso cotidiano, abri-las, no entanto, é nosso dever. E se, tendo a chave, não a conseguimos abrir sozinhos, significa que precisamos de ajuda. Ajudar uns aos outros, não no sentido da caridade, é um dos pilares da fraternidade. Maria e eu estávamos novamente juntas e ficaríamos assim até o final da viagem. Eu precisava dela, meu alter ego, e ela de mim (seu contato com a realidade).


Freedom, de Jennie Smallenbroek
Para uma viagem animada, saudável, rica, também é necessário ter boa dose de humor, principalmente no que diz respeito a nós mesmos. Encarar as dificuldades com a certeza de que tudo passa, não apenas é a força que está por trás de toda atitude, mas é também a preparação para o passo seguinte: entender a mudança. Nada permanece o mesmo depois que se compreende que o que traz felicidade é a caminhada, não o destino. Assim, todas as decepções, dúvidas, desânimo fazem parte da história que escrevemos. A vida é um mistério e ganhamos mais tempo vivendo-a, que tentando entendê-la.  Esta é talvez a primeira lição que devemos aprender: o paradoxo com que teremos que lidar durante a caminhada. O intervalo foi inspirador para a viagem, como um oásis no deserto. O principal é manter o foco e não perder de vista nossa contribuição neste universo. Olhar para os lados só acrescenta alguma coisa quando focamos nos talentos das pessoas que nos cercam. Quando se aprende a olhar por ângulos virtuosos tem-se a humildade necessária para aprender com os outros.  Maria e eu tentávamos aprender com a história dos santos.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

A música e eu em Paris



The passion of music, de Andrew Atroshenko



Enfim chegamos a Paris, embora ainda tivéssemos mais dois dias de viagem, para Lourdes e Nevers.  Conheço primeiro as entranhas parisienses, seu subterrâneo, pois os dois primeiros dias ficamos como marmotas, só andando de metrô. Mas nos metrôs pude conhecer uma Paris que não está nos filmes, nos relatos românticos, na imagem sonhadora e romântica que se tem de Paris. Nas veias da cidade circula a vida real. Os metrôs tem vida de gente que trabalha, que dorme enquanto não chega à sua estação, que ostenta fisionomias cansadas e olheiras, que os cabelos não seguem os ditames da última moda, e nem os sapatos, nem os casacos.  Isso é o geral. Algumas linhas são mais chiques, outras mais pobres. Depende do lugar para onde se vai. Acho que só não pegamos mesmo duas linhas de metrô e como ficamos 15 dias lá e essa opinião não mudou, tenho-a como verdade.

                               Autor desconhecido
Nos bastidores de Paris também se vive emoções e, nesse sentido, a vida de músico bate forte em mim. Fico desolada vendo músicos tão bons (nem todos) tendo como palco apenas os corredores das estações de metrô. É de cortar o coração, por um lado, mas por outro, é muito bom ver como são respeitados pelos passantes. Não são pedintes. São artistas que não tem onde mostrar sua arte, ou que estão divulgando seus CDs – já que hoje é relativamente fácil fazer uma produção independente. Enfim, ao descer dos trens e ser invadida por música ajuda a manter o equilíbrio emocional, tira a gente da dureza da vida, dos pensamentos pessimistas. Para silenciar vozes externas preciso sempre de boa música. Claro está para mim que a música tem o poder de mexer com nosso ser interior, criar imagens e evocar lembranças. 


Saíamos cedo e encontrávamos uns músicos nas linhas que estávamos usando. Quando voltávamos já no fim da tarde eles ainda estavam lá, tocando sem parar. E nem todos tinham o mesmo comportamento em relação à platéia. Em Viena, por exemplo, teve um violinista que executava com muita sensibilidade Adágio, de Albinoni, e  quando fomos filmar, ele parou de tocar. Só falava o alemão, mas pela gesticulação e o pouco inglês pudemos entender que ele se desculpava, que dizia não tocar bem e que não estar vestido de forma adequada. Deixamos, claro, de filmar e ele voltou a tocar. Em Munique também, um grupo que tocava à noite, próximo à Marienplatz, também fez um sinal para que não filmasse. Não sei dizer quantas vezes não consegui segurar as lágrimas. Num desses dias fui tomada por Vivaldi, La Stravaganza, uma música bem alegre, e senti meu coração pular. Tive o impulso de parar, eu andava a frente dos meninos, mas me contive. Exultei quando eles pararam para ouvir. Era um grupo grande e me tocou profundamente. Tocou tanto, a ponto de me fazer comprar um CD por 20 euros. Vimos o grupo outras vezes, e eu conversei depois com um dos integrantes que oferecia o CD. Fiquei sabendo que eram todos profissionais, pertenciam a uma associação chamada Madrigal de Paris. 
Leonid Afremov

Durante toda a viagem, por todos os países que passamos, os músicos de rua chamavam minha atenção, fosse por sua postura, pela qualidade do som, pela peculiaridade de seus instrumentos, ou mesmo pelo olhar do musicista. Música foi capítulo à parte.  Reproduzo aqui o pensamento de meu irmão em relação principalmente à Praga. Há sete anos, quando ele esteve lá pela primeira vez, os músicos na Ponte Carlos IV tocavam músicas tchecas, desta vez, ouvimos o de sempre: jazz, possivelmente para ser familiar aos turistas. Em Budapeste tem grupos regionais e apresentações de danças folclóricas em algumas praças, mas não tivemos a sorte de encontrar nenhum dando essa colher de chá.  Mas há casos que dependendo da música, não importa onde ela toca. Foi assim com “As Time Goes By”, tocada por um senhor bem idoso em saxofone.  Viajei na imaginação. Um país que teve suas portas fechadas para o mundo por tanto tempo, como será que ele guardou a lembrança dessa música? É uma música da década de 30, época em que Praga é cedida  à Alemanha Nazista até o final da Segunda Guerra, quando passa para o domínio da União Soviética. Só em 92 com a dissolução dos laços tchecos e eslovacos, ela passa a ser a capital da República Tcheca. Fico então pensando, quando foi que ele aprendeu essa música. Que informações recebia nessa época de fechamento. Enfim, a imaginação é nossa verdadeira liberdade, pois nos permite completar todo vazio que temos seja de informação ou de estado emocional.


            Classical music, Kristc Snezana

Quando fechamos os olhos, tapamos os ouvidos, buscamos a solidão, percebemos que nem sempre conseguimos calar as vozes e os pensamentos fogem, mas às vezes conseguimos agarrar um deles e trazemos para o mundo concreto, tentando compreender seu significado e desvendar um pouco mais do que tem escondido Isso dá conteúdo para a formação do pensamento,  mas a inspiração surge do nada.  Escrever é assim.  Decifrar pensamentos e observações e colocá-los em frases construídas, com um conhecimento básico da língua. Para expressar o que sentimos, nem sempre precisamos ser grandes gramáticos, se assim fosse, os melhores escritores seriam aqueles que cursaram Letras. Acho que o mesmo acontece com a música. Alguns compositores são especiais. Parecem compor com o objetivo de levar as pessoas ao clímax. Assim, a música que tanto mexe  conosco, cumpre sua função de nos tirar do cotidiano e nos transportar para aventuras desconhecidas e, ao mesmo tempo familiar, de descobrimento e encantamento.  Gosto de escrever ouvindo música. É estranho, porque na família, sou a única que não tenho habilidade musical.