L´Île de la Cité et Cathédral de Notre Dame, de Marie-François Firmin Girard (1838-1921) |
Alguns
escritos sagrados afirmam que “no princípio tudo era treva, até que se fez a
luz, porém a luz não veio das trevas, porque as trevas são a ausência de luz”.
Essa aparente incoerência é a fonte infinita da razão, da ciência, da luz que
brota das trevas, do conhecimento que, por mais que evolua, nunca será o
absoluto. Na ponte sobre o Sena, tendo como moldura a Catedral de Notre Dame e
Maria me cutucando sem parar, eu estava anestesiada. Flutuava em lembranças não
vividas, cheiros que me pareciam familiares sem que nunca os tivesse sentido, e
uma vontade estranha de chorar. Fico pensando como construímos nossos sonhos e
como precisamos deles para suportar a realidade. Há quatro anos, quando ainda
estava sob o impacto e euforia do presente (a viagem foi presente de Natal de meus
irmãos), recebi a notícia que estava com câncer. O sonho, irrealizado até
então, ajudou-me a ter coragem e a manter viva a esperança. Quando o desânimo
batia forte e a depressão me rondava, meu irmão ligava contando de suas
pesquisas e roteiros, perguntando como estava meu francês e (acho) era mesmo
para me animar, para não me deixar esquecer que ainda tinha vida pela frente e
que ela podia ser melhor.
O
tempo de trevas passou. A viagem teve que ser adiada três vezes. No primeiro
ano eu sentia muitas dores, os braços ainda não tinham recuperado o movimento.
No segundo ano, meus ossos pareciam ter ido pro pau, eu não andava sem mancar,
não havia uma única junta em meu corpo que não sofresse dor aguda. Estava com
fibromialgia, uma consequência do câncer. E no terceiro ano foi o casamento de
minha sobrinha, que acabou me tirando o prazer da companhia dela na viagem e o
receio de me ausentar e deixar meus idosos. Porque estou escrevendo sobre isso?
Já faz tanto tempo. Porque durante todo esse tempo eu pensava: ainda vou
agradecer pela minha cura na Catedral de Notre Dame. E antes mesmo de entrar na
Catedral, todos esses pensamentos voltaram. Eu estava completamente fora de
órbita. Acho que por isso, demorei tanto para retomar os posts de Paris. Nunca
vou conseguir reproduzir o turbilhão que tinha por dentro.Confesso
ter tido um lance de desânimo quando vi o tamanho da fila para entrar na
Catedral, mas a fila era tão rápida que decidimos entrar naquele dia. Seria
naquele dia ou só em uma próxima viagem. Dentro, o sentimento foi outro. Como
sempre, muita gente, muita câmera e celular registrando as imagens, e, ainda
que estivéssemos sem pressa, não existia lá dentro um cantinho que convidasse à
meditação. Senti a Catedral mais como museu que igreja. Claro que rezei e
agradeci mesmo com o barulho e a movimentação. Também já tinha rezado bastante
em Lourdes e Nevers, que não me senti em falta ou frustrada.
Era
tanto detalhe, tanta escultura, tanta pintura, tanta informação que desisti de
fotografar e passei a filmar, mas os filmes não ficaram bons, ficaram muito escuros.
Não sei onde estava com a cabeça de usar só o celular. Eu havia levado a
câmera, mas não a usei nenhuma vez. Sorte que Dedé e Marcelo registraram tudo e
agora tenho três pen-drives com mais de 100 GB de lembranças e registros.
Na
Notre Dame, como em todas igrejas que entramos na Europa, tudo é muito suntuoso
e predomina o gótico. Eu estava tão bilolada que confundi O Corcunda com o
Aleijadinho e, consequentemente, misturei o barroco e o gótico. Saí da fé para
a arquitetura e da arquitetura para os obreiros. Mas a arquitetura é mesmo
impressionante e penso como os mestres construtores passavam seus conhecimentos
e segredos. Percebe-se claramente que essas obras não eram finalizadas em uma
única geração. Não é à toa que se formaram em sociedade fechada. Imagino se
hoje os novos engenheiros e arquitetos seriam capazes de se aventurar em
construções dessa magnitude. E olha que a tecnologia avançou assustadoramente.
Entendo porque os arquitetos gostam tanto de viajar para a Europa.
Volto
então, mais uma vez, aos construtores.
A grandiosidade das igrejas parece
querer nos remeter à nossa pequenez, embora eu não saiba se seria essa mesma a
intenção. Há muitos símbolos e esse é um universo fechado para não iniciados.
Por isso é mais fácil pensar na vida. E eu estava ali: viva. A necessidade de
crer, seja pela afirmação ou negação de algo maior que a vida mortal – com
todas suas mazelas, ignorâncias e misérias – representa para o ser humano a
esperança no futuro. Reduzir a vida, ao tempo de mortalidade, significaria
tirar-me a necessidade de idealismo infinito, as justificativas de aspirações à
evolução, que inspira as abnegações e dá forma às virtudes. Sem fé não existe
religião. Por sua vez, a ciência também guarda seus mistérios, usa símbolos e fórmulas
para exprimir sua profundidade desconhecida, mas partindo daquilo que é
conhecido. A forma simbólica está acima da razão científica e a ciência não
pode explicar, nem realizar a obra da fé. Fé e ciência, crer e saber não podem
se confundir, mas também não podem se opor. Negar ou contestar, em nome da
ciência, as decisões da fé, é admitir que não se compreende nem a ciência e nem
a fé.
A Catedral de Notre Dame estava vista e havia
cumprido sua missão para mim. Obrigada Deus pela vida!
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