2005
Marley Costa Leite
James Abbot McNeill Whistler |
Pela primeira vez, em mais de quarenta anos, Maria se
arrisca a atravessar as águas cristalinas do rio, para ver o que realmente
existia na outra margem. Eram muitas lendas passadas de boca em boca desde a
sua infância. A travessia já lhe remexia as entranhas e traziam à tona todo
tipo de lembrança, de antigos amores, alguns que morreram naquelas mesmas
águas, de um piquenique num domingo à tarde, quando duas amigas foram tragadas
ao mesmo tempo. O rio não era largo, mas de águas frias e profundas.
Maria chega à outra margem quase morrendo de frio. Não tem
como se aquecer, a roupa molhada grudada em seu corpo faz com que a sensação de
frio seja aumentada. As extremidades, mãos, pés e nariz estão doloridos e ela
mal consegue se movimentar. Coloca-se a caminhar, quem sabe encontra alguém ou
algum lugar para se recuperar antes de iniciar seu caminho de volta.
Uma das muitas lendas que existia sobre o lugar é que ali morava
uma bruxa malvada, que atraía as crianças que brincavam no rio e as
transformava em escravas. Maria ri com as lembranças. Já estava muito grande
para acreditar em histórias de bruxas e até de fadas.
A mata que margeia o rio é fechada e escura, ouve-se o som
de muitos animais, pássaros, mas que ela não consegue identificar a origem. Ela
caminha, dividida entre o sentimento de arrependimento e de curiosidade, até
chegar a uma clareira que tem uma choupana.
- É verdade, pensa ela, a bruxa do rio existe. E agora o que
faço?
Pensa em voltar correndo, mas uma voz a torna estática.
- O que aconteceu filha? Você está tremendo, com os lábios
roxos...
- Estou com frio. E também estou com medo.
- Meu nome é Batica. Moro aqui há muitos anos e sei que do
outro lado do rio existem muitas histórias a meu respeito, mas não tenha medo.
Eu estava mesmo esperando que você viesse até aqui, há muito tempo.
- Como? A senhora me conhece?
- Conheço os segredos do tempo e do espaço. Mas venha, você
está ardendo em febre. Deixe-me cuidar de você.
Maria entra com dona Batica no casebre e se encanta com o
que vê. Tudo muito simples, muito pobre, mas extremamente limpo e organizado.
Ela pede que Maria tire a roupa e se deite na cama, enquanto prepara umas
ervas. Maria não sente forças para recusar qualquer pedido, mas tem uma
estranha sensação de segurança e deixa a situação fluir sem a sua
racionalidade.
Dona Batica cobre todo seu corpo com as folhas e, apesar de
estarem em infusão na água quente, a sensação de frio aumenta e Maria não
consegue parar de tremer. Depois ela pega um plástico e um cobertor e coloca
sobre Maria. Senta-se a um canto com um tambor e batendo um ritmo harmônico,
entoa algo que mais se parece com um lamento indígena. Começa se aquecer e se
entrega àquele aconchego, sente que vai adormecer. Desperta, não sabe quanto
depois. Está revigorada, não se lembra de muita coisa naqueles três dias,
apenas que teve muitos sonhos, alguns feios, outros lindos. Procura por dona
Batica, quer agradecer-lhe, mas não encontra qualquer vestígio. Nem tambor, nem
folhas no seu corpo, apenas o casebre, nem tão limpo, nem tão organizado.
Chama-lhe atenção um detalhe que não observara quando chegou. Tem um lindo
jardim de lírios muito brancos na frente. Delírios? Que importa? Aquele era o
descanso que há muito ela precisava, esgotava-se de suas angústias, enchia-se
de novo de esperança. Levanta-se, veste as roupas que já estão secas e inicia
seu caminho de volta.
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