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Diante do tribunal popular, Sócrates é acusado pelo poeta
Meleto, pelo rico curtidor de peles, influente orador e político Anitos, e por
Licão personagem de pouca importância. A acusação era grave: não reconhecer os
deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. O relato
do julgamento feito por Platão (428-348 a.C.) a Apologia de Sócrates, é
geralmente tido como bastante fiel aos fatos e apresenta-se dividido em três
partes. Na primeira, Sócrates examina e refuta as acusações que pairam sobre
ele, retraçando sua própria vida e procurando mostrar o verdadeiro significado
de sua "missão". E proclama aos cidadãos que deveriam julga-lo:
"Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos
como novos, de que cuideis menos de vossos corpos e de vossos bens do que da
perfeição de vossas almas, e a vos dizer que a virtude não provém da riqueza,
mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos
homens, quer na vida pública quer na vida privada. Se, dizendo isso, eu estou a
corromper a juventude, tanto pior; mas, se alguém afirmar que digo outra coisa,
mente". Noutro momento de sua defesa, Sócrates dialoga com um de seus
acusadores, Meleto, deixando-o embaraçado quanto ao significado da acusação que
lhe imputava - "corromper a juventude". Demonstra que estava sendo
acusado por Meleto de algo que o próprio Meleto não sabia bem explicar o que
era, já não conseguia definir com clareza o que era bom e o que era mau para os
jovens.
Em nenhum momento de sua defesa - segundo relato platônico -
Sócrates apela para a bajulação ou tenta captar a misericórdia daqueles que o
julgavam. Sua linguagem é serena - linguagem de quem fala em nome da própria
consciência e não reconhece em si mesmo nenhuma culpa. Chega a justificar o tom
de sua autodefesa: "Parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se
absorver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convence-lo".
Embora a demonstração pública da inconsistência dos argumentos de seus
acusadores e embora a tranqüila e reiterada declaração de inocência - e talvez
justamente por mais essas manifestações de altaneira independência de espírito
-, Sócrates foi condenado. Mesmo para uma democracia como a ateniense, ele era
uma ameaça e um escândalo: a encarnação, para a mentalidade vulgar, do
"escândalo filosófico" que, ali mesmo em Atenas, acarretara a
perseguição de Anaxágoras de Clazômena, que se viu obrigado a fugir.
Como era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates
foi convidado a fixar sua pena. Meleto havia pedido para o acusado a pena de
morte. Mas seria fácil para Sócrates salvar-se: bastava propor outra
penalidade, por exemplo pagar uma multa, como chegaram a lhe sugerir os amigos.
Afinal, fora difícil obter um veredicto de culpabilidade: havia sido condenado
por uma margem de apenas sessenta votos. Qualquer pena moderada que ele mesmo
propusesse seria certamente acatada com alívio por aquela assembléia
constrangida por condenar um cidadão que, apesar de suas excentricidades e de
suas atitudes muitas vezes irreverentes e incomodas, apresentava aspectos de
indiscutível valor. Afinal, era aquele o Sócrates que não se havia deixado
corromper pelos tiranos, inimigos da democracia, e que lutara bravamente na
guerra por sua cidade e por seu povo. Bastava que declarasse estar disposto a
pagar algumas moedas - e todos sairiam dali satisfeitos consigo mesmos, por
terem cumprido o "dever" de punir um cidadão suspeito de atividades
nocivas a cidade, e mais contentes ainda por se sentirem magnânimos, ao
permitirem que continuasse vivendo.
Mas Sócrates não faz concessões. Propor-se a cumprir qualquer
pena, mesmo pagar uma multa, por menor que fosse, seria aceitar a culpa de que
não o acusava a própria consciência. Na segunda parte da Apologia, Platão
descreve o momento em que, novamente diante de seus juízes, Sócrates estabelece
a pena que julgava merecer. Nem exílio, nem multa. "Ora, o homem (Meleto)
propões a sentença de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de propor em troca,
Atenienses? A que mereço, não é claro? Qual será? Que sentença corporal ou
pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que,
negligenciando o de que cuida toda gente - riquezas, negócios, postos
militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na
política, coisas em que me considero de fato por demais pundonoroso para me
imiscuir sem me perder -, não me dediquei àquilo a que, se me dedicasse,
haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à
procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que
declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar
menos do que é seu do que de si próprio, para a ser quanto melhor e mais
sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado o mesmo
princípio nos demais cuidados? Que sentença mereço por ser assim? Algo de bom, Atenienses,
se há de ser a sentença verdadeiramente proporcionada ao mérito; não só, mas
algo de bom adequado a minha pessoa. O que é adequado a um benfeitor pobre, que
precisa de lazeres para vos viver exortando? Nada tão adequado a tal homem,
Atenienses, como ser sustentado no Pritaneu; muito mais do que a um de vós que
haja vencido, nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas.
Esse vos dá a impressão da felicidade; eu, a felicidade; ele não carece de
sustento, eu careço. Se, pois, cumpre que sentenciam com justiça e em proporção
ao mérito, eu proponho o sustento no Pritaneu."
Sócrates não deixava saída para seus juízes. Ou a pena de
morte, pedida por Meleto, ou ser alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo,
como herói ou benemérito da cidade. Impossível voltar atrás, desfazer a
condenação, inocentar o acusado. Entre a morte e as impossíveis recompensas, ou
juízes ficaram sem alternativa real. Para não abrir mão de sua própria
consciência, Sócrates optara pela morte. Que então morresse.
Immanuel Kant, Introdução à crítica do juízo. 2 ed,
[Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho], São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Os
Pensadores)