Mulher no espelho - Picasso |
Liguei hoje para Maria. Ela anda
sumida e muita gente tem me pedido para fazer essa ponte. Gostam de suas
histórias. Encontro-a desanimada, mas cheia de atividades. Reserva um tempinho
para mim e conversamos longamente. Os últimos tempos foram difíceis para ela,
exigindo um esforço muito grande para se reestruturar, em todos os sentidos. As
coisas que lhe aconteceram, as perdas que sofreu, atingiram-lhe como uma bomba
que explode depois que a guerra termina. Foi necessário muita disciplina para
não tropeçar e desistir da luta. Bastava um único pensamento negativo para
abrir a porta secreta em seu interior e ela perceber, com clareza nunca
imaginada, a batalha milenar entre o bem e o mal. Ela precisava de tempo para
aprimorar o espírito.
Não era a primeira vez que
tínhamos uma conversa dessa natureza, mas senti que navegava em águas muito
profundas e que não conseguiria traduzir em palavras suas vivências, que deixavam
transparecer a sensação de união com o Infinito. Parecia fugir para um oásis
tranquilo de inatividade, que lhe permitia caminhar em si mesma com conforto e
simplicidade. Maria me parecia esquisita, estranha, mas paradoxalmente feliz em
seu projeto interior criativo, o que tornava nossa conversa uma atitude
prática, renovada e aconchegante. Em suas reflexões, além de conhecer a si
mesma, ela queria entender um pouco da natureza humana, o porquê dos instintos
liberados sem censura que servem para destruir e magoar.
Ao desligar o telefone, refleti
sobre tudo que conversamos e acho que também eu percebo de forma mais clara
minha imperfeição e a importância de reservar um tempo para perscrutar a alma
com determinação e disciplina mental.
Coloco uma música suave, fecho os olhos e começo acompanhando o ritmo de
minha respiração. Aos poucos vou me sentindo mais leve. Tenho a sensação de
andar por alamedas de flores balsâmicas, cujo aroma regenera minhas feridas. O
som que ouço não é mais o da música, mas uma melodia desconhecida que parece me
carregar por uma espiral à infinitude do espaço. Experimento então a sensação
de liberdade, de solidão cósmica, de paz eterna. Compreensão que precisa ser
colocada em prática. Liberdade que pode significar o resgate de pessoas e
condições vividas que, acima de tudo, precisam ser compreendidas e respeitadas. Além de meu mundinho existem outras pessoas
no universo, com sentimentos tão contraditórios, e, assim como eu, travam lutas
diárias para conseguir percorrer os próprios labirintos. Há que ter ternura no
olhar e doçura nas palavras.
Podemos imaginar um tempo sem
acontecimento, mas não um acontecimento sem tempo. E esse é o tempo de me
entender com a existência. Sinto que, também eu, vivo um período de transição,
de nova compreensão e preparação para outra fase. O tempo ensina que é possível
viver mil vidas em apenas uma existência. A cada recolhimento, a quietude
interior me proporciona reflexões, acolhimento e intimidade que torna a solidão
amiga. Um silêncio necessário para colocar em ordem sentimentos desencontrados,
perceber a inutilidade da vaidade, da pressa, da ganância, da paixão
desenfreada. Choro as dores das perdas, a mágoa, o desengano, mas aprendo a
contar os dias com o coração mais sábio. Encerro então com o que, um dia,
Joseph Kern escreveu para mim: “Palavras nos faltam quando mais acreditamos que
elas poderiam fazer alguma diferença. Elas podem tentar quebrar o isolamento e
ecoar no silêncio, no vazio, em algum ponto do caminho. Um silêncio de atitudes
que poderia ser preenchido com palavras fecha-se entre o silêncio e a solidão”.
Resserenada, compreendo então o
que é vivenciar um momento assim. Não há o que temer, não há medo, não há
morte, não há luta, não há dor, não há tristeza.