Magritte |
Há cinco anos, quando sofri câncer e perdi as duas mamas,
tive um encontro profundo com a vida. Poderia dizer que foi com a morte. Seria
a mesma coisa. Entendi que a vida é aquele traço que separa as datas de
nascimento e de morte. É entre o nascer e o morrer – as únicas certezas que
temos – que acontece o grande fenômeno de viver. Quando fiquei doente deixei de
brigar com o tempo porque ele não me incomodava mais. É quando, imagino eu, a morte passa a
exercer um verdadeiro fascínio nas pessoas, seja pelo medo de encontrá-la, seja
pela curiosidade de entender o significado mais profundo da vida, pela
necessidade de um prelúdio de renascimento em um nível de vida superior.
Dentro de nós parece existir uma certeza de que podemos
traçar nossas trilhas para não nos perdermos no meio do caminho e, em algumas
circunstâncias, temos também o direito da escolha e podemos, nesta hora, optar
pela vida, cônscios de que a alegria, assim como a tristeza, é um estado de
alma; que o ritmo pode ser acelerado, as distâncias podem ser encurtadas, ainda
que o tempo continue se fazendo de espelho para nós.
A preocupação deixa de ser a morte física.
Buscamos uma espécie de fornalha interior que nos permita sair novos,
extinguindo e transformando o Ser velho. O tempo que existe é uma questão de
consciência, de compreensão, de aceitação e, por mais incrível que possa
parecer, de escolha também. Entendemos que morrer não é privilégio apenas dos
velhos. Aprendemos a chorar as dores das
perdas, a mágoa, o desengano e infalivelmente aprendemos a contar os nossos
dias com o coração mais sábio.
Não podemos prever todos os perigos que ameaçam nossas
vidas, mas podemos agradecer por não conhecermos o futuro e não vivermos
atormentados por ele, como bem disse Horácio: “Um Deus avisado escondeu-nos os
acontecimentos do futuro sob uma noite espessa, e ri-se do mortal que se
inquieta mais do que deve acerca do destino”.
O filósofo Michel de Montaigne – de como filosofar é
aprender a morrer – afirma que “Não sabemos onde a morte nos
aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é
meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de
servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da
vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”. A
vida para ele, é como um relâmpago na noite eterna, dura apenas um instante,
enquanto a morte parece ser nossa condição natural e perpétua. Se o
que parece ser não é, talvez a incerteza possa ser a única certeza. A natureza
criou apenas um meio de entrar na vida, mas inúmeras formas de sair dela. A morte está
em toda parte e se podemos tirar a vida de alguém, não podemos, entretanto,
tirar-lhe a morte.
Dedicado ao meu primo Afrânio Araujo, que nos deixou ontem.